quinta-feira, 2 de abril de 2015

Hannah Arendt e a crítica aos totalitarismos
Hannah Arendt viveu o horror da ascensão do nazismo na Alemanha e a crescente perseguição aos judeus, com o fortalecimento de um discurso político racista. De família judia, viu-se obrigada a exilar-se nos Estados Unidos. Dedicou-se então a refletir sobre o totalitarismo, essa nova forma de governo, tomando-o como um problema filosófico e não apenas social.
Em seu livro "As origens do totalitarismo", publicado em 1951, Arendt propõe uma explicação por meio de um amplo estudo histórico e político desta nova forma de governo. Nas duas primeiras partes do livro - antissemitismo e imperialismo - a autora oferece alguns dos elementos que, ao se cristalizarem, permitiram a ascensão do totalitarismo alemão. Na terceira parte do livro, ela analisa os elementos que constituem os dois governos totalitários: a Alemanha de Hitler e o regime soviético sob Stalin. Estes regimes se fundamentam, segundo a autora, em uma ideologia, no terror e na mobilização das massas.
O totalitarismo é uma negação radical das liberdades individuais. A questão filosófica que ele suscita é: como podem as pessoas consentir com a negação de sua própria liberdade, suportando e até apoiando esse tipo de regime político?
Arendt retoma as clássicas análises de Montesquieu, para afirmar que o totalitarismo escapa a esse sistema analítico da política clássica. Ela afirma que no esquema analítico de Montesquieu há certos princípios de ação que são seguidos pelos indivíduos como cidadãos, em cada regime político, bem como pelos governantes. Numa monarquia, esse princípio é a honra; numa república, é a virtude; numa tirania, é o medo. Em outras palavras: numa república, tanto o cidadãos quanto governantes sentem orgulho em não dominar os demais, ao menos naquilo que diz respeito aos assuntos públicos; numa monarquia, as pessoas agem visando à honra pública, isto é, querem ser reconhecidas como alguém honrado; numa tirania, o que move as ações é o medo, medo dos súditos em relação ao tirano, mas também o medo dos tiranos e relação aos súditos. Todo esse esquema está baseado em uma separação das esferas privada e pública da vida. As relações políticas dizem respeito, claro, à esfera pública; o que o indivíduo faz em sua vida privada é uma outra história.
Segundo Arendt, o totalitarismo escapa a esse esquema, na medida em que sua pretensão é a dominação total do ser humano, apagando a distinção entre as esferas pública e privada. Um governo totalitário não quer dominar apenas o cidadão (esfera pública); ele quer dominar também o indivíduo (esfera privada). Sendo assim, é evidente que o princípio de ação do governo totalitário não é a virtude nem a honra. Seria o medo? Será que as pessoas aderem ao totalitarismo por medo? Arendt afirma que não. O totalitarismo não é uma tirania como aquelas classicamente conhecidas. Os governados até podem até sentir medo; mas os governantes totalitários não imprimem o terror por medo dos governados. Para Arendt, o princípio político do totalitarismo é o terror, que torna desnecessário qualquer daqueles princípios de ação propostos por Montesquieu.
A questão central do governo totalitário é que ele se coloca fora do esquema de ser um poder legal, de direito, ou ilegal, arbitrário. A dominação totalitária não segue a lei tradicionalmente conhecida; segue um esquema lógico, que se considera uma "lei da História", no caso de Stalin, ou uma "lei da natureza", no caso de Hitler. Ambas as leis estão além das convenções humanas e não podem ser debatidas ou humanamente controladas. Um exemplo: nenhum regime político pode matar os cidadãos, pois a lei garante o respeito à vida; mas o totalitarismo nazista matou "legalmente" milhões de judeus, pois estava seguindo uma "lei da natureza" de purificação da raça, segundo suas ideias. Os governantes nazistas diziam estar fazendo um "bem à humanidade" ao matar os judeus. E consideravam que o faziam segundo a lei, e não de modo arbitrário e ilegal. Aí está a base do terror totalitário: transformar em legal uma ação abominável dos governantes.
Segundo Arendt, o totalitarismo captura os indivíduos porque eles se encontram totalmente isolados, sem laços sociais. É o que ela chama de uma "sociedade atomizada", que perde sua coesão. Diferenciando isolamento de solidão (na solidão a pessoa está "consigo mesma", enquanto no isolamento nem consigo ela dialoga), a pensadora afirma que o terror totalitário consegue unir esses indivíduos isolados na mesma medida em que os mantêm isolados. E ainda amplia seu isolamento porque só indivíduos isolados podem ser dominados por completo, sem opor resistência. O terror totalitário não forma uma comunidade política de fato, em que as pessoas participam de uma vida comum. O totalitarismo transforma o povo em "massa", em multidão, que Hobbes dizia ser algo anterior ao pacto político.
Outro aspecto importante do totalitarismo é que seu governo só existe enquanto se mantém em movimento. É essa a razão do expansionismo totalitário, que precisa conquistar outros países, outros territórios. Seu limite é o mundo todo. Sua proposta é fundir todos os indivíduos em uma única humanidade, ainda que estejam todos isolados uns dos outros, sob um mesmo governo totalitário.
Ainda segundo Arendt, o totalitarismo prepara os indivíduos para serem ao mesmo tempo carrascos e vítimas. É assim que funciona o terror totalitário: ninguém está a salvo. Mesmo aqueles que ocupam postos de poder no governo podem, de uma hora para outra, cair em desgraça e tornar-se vítimas, sofrendo o mesmo destino que impunham a outros. Isso é garantido por meio da ideologia, e sua propaganda.
O totalitarismo constrói uma ideologia, um sistema explicativo do mundo e da vida, que não tem necessariamente relação com a experiência concreta, mas explica tudo, o passado e o futuro. O poema de Bertolt Brecht, escrito na década de 1930, sob o calor do regime hitlerista, mostra bem claramente o mecanismo da propaganda nos regimes totalitários.


"Necessidade da propaganda

É possível que em nosso país nem tudo ande como deveria andar.
Mas ninguém pode negar que a propaganda é boa.
Mesmo os famintos devem admitir
Que o Ministro da Alimentação fala bem.
Quando o regime liquidou mil homens
Num único dia, sem investigação nem processo
O Ministro da Propaganda louvou a paciência infinita do Führer
Que havia esperado tanto para ter a matança
E havia acumulado os patifes de bens e distinções
Fazendo-o num discurso tão magistral, que
Naquele dia não só os parentes das vítimas
Mas também os próprios algozes chorarm.
E quando em um outro dia o maior dirgível do Reich
Se desfez em chamas, porque o haviam enchido de gás inflamável
Poupando o gás não inflamável para fins de guerra
O Ministro da Aeronáutica prometeu diante dos caixões dos mortos
Que não se deixaria desencorajar, o que ocasionou
Uma grande ovação. Dizem que houve aplausos
Até mesmo de dentro dos caixões.
E como é exemplar a propaganda
Do lixo e do livro do Führer
Onde quer que esteja jogado.
Para propagar o hábito de juntar trapos, o poderoso Göring
Declarou-se o maior "juntador de crápulas" de todos os tempos
E para acomodar os crápulas fez construir
No centro da capital do Reich
Um palácio ele mesmo do tamanho de uma cidade.
Um bom propagandista
Transforma um monte de esterco em local de veraneio.
Quando não há manteiga, ele demonstra
Como um talhe esguio faz um homem esbelto.
Milhares de pessoas que o ouvem discorrer sobre as autoestradas
Alegram-se como se tivessem carros.
Nos túmulos dos que morreram de fome ou em combate
Ele planta louros. Mas já bem antes disso
Falava de paz enquanto os canhões passavam.
Somente através de propaganda perfeita
Pôde-se convencer milhões de pessoas
Que o crescimento do Exército constitui obra de paz
Que cada novo tanque é uma pomba da paz
E cada novo regimento uma prova de
Amor à paz.
Mesmo assim: bons discursos podem conseguir muito
Mas não conseguem tudo. Muitas pessoas
Já se ouve dizerem: pena
Que a palavra "carne" apenas não satisfaça, e
Pena que a palavra "roupa" aqueça tão pouco.
Quando o Ministro do Planejamento faz um discurso de louvor à nova
impostura
Não pode chover, pois seus ouvintes
Não têm com que se proteger.
Ainda algo mais desperta dúvidas
Quanto à finalidade da propaganda: quanto mais propaganda há em
nossa país
Tanto menos em outras países.
BRECHT, Bertolt. Sátiras alemãs. In: Poemas 1913-1956. 4. ed.
São Paulo: Brasiliense: 1990. p. 197-199.

Segundo Arendt, a grande lição do totalitarismo, o perigo que ele representa, é o isolamento dos seres humanos. Ainda que esse isolamento seja o sintoma de uma sociedade de massas, ele é contrário à condição humana, segundo a qual os seres humanos habitam o planeta como coletividade, e não como seres solados. O modo de evitar novos regimes de terror, portanto, é resgatar os laços sociais e políticos entre os indivíduos.


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