quinta-feira, 26 de maio de 2016

Por que ética?

"Por que ética? E o que é a ética? Não poderemos nos contentar com uma representação qualquer ou indeterminada. Da mesma forma, pressupondo uma pré-compreensão completamente indeterminada, desde o início podemos nos perguntar: por que afinal devemos nos ocupar com a ética? Na filosofia, mas também nos curricula das escolas, a ética parece ser um fenômeno da moda.
Entre os jovens intelectuais, antigamente havia interesse mais pelas assim chamadas teorias críticas da sociedade. Ao contrário disto, na ética supõe-se uma reflexão sobre valores reduzida ao individual e ao inter-humano. E teme-se que aqui, contudo, não seria possível encontrar nada de obrigatório, a não ser remontando-se as tradições cristãs ou de outras religiões. É o ético, ou então, ao contrário, as relações de poder, que são determinantes na vida social? E estas não determinam, por sua vez, as representações éticas de um tempo? E se isto é assim, ao se pretender lidar diretamente com a ética e não a partir de uma perspectiva de crítica da ideologia, não representaria isto um retorno a uma ingenuidade insustentável?
Por outro lado, não podemos desconsiderar que, tanto no âmbito das relações humanas quanto no político, constantemente julgamos de forma moral. No que diz respeito às relações humanas, basta observar que um grande espaço das discussões entre amigos, na família ou no trabalho abrange aqueles sentimentos que pressupõem juízos morais: rancor e indignação, sentimentos de culpa e de vergonha. Também no domínio público julga-se moralmente de forma contínua, e valeria a pena considerar que aparência teria uma disputa política não conduzida pelo menos por categorias morais. O lugar de destaque que os conceitos de democracia e direitos humanos assumiram nas discussões políticas atuais também é, mesmo que não exclusivamente, de caráter moral.
A discussão sobre a justiça social, seja em âmbito nacional ou mundial, é também uma discussão moral. Quem rejeita a reivindicação de uma certo conceito de justiça quase nem o pode fazer sem contrapor-lhe um outro conceito de justiça. Em verdade as relações de poder de fato são determinantes, mas é digno de nota que elas necessitem do revestimento moral.
Por fim, existe uma série de discussões políticas relativas aos direitos de grupos particulares ou marginalizados, as quais devem ser vistas como questões puramente morais: a questão acerca de uma lei de imigração limitada ou ilimitada, a questão do asilo, os direitos dos estrangeiros, a questão sobre em que medida nos deve ser proibida ou permitida a eutanásia e o aborto;os direitos dos deficientes; a questão de se também temos obrigações morais perante os animais, e quais. Acrescentem-se aqui as questões da ecologia e da nossa responsabilidade moral para as gerações que nos sucederão. Uma nova dimensão moralmente desconcertante é a da tecnologia genética.
O complexo de questões acima mencionado diz respeito a estados de coisas que em parte são novos (por exemplo, a tecnologia genética), e em parte alcançaram, através do avanço tecnológico, um lugar de destaque até agora não existente (por exemplo, a responsabilidade para com as gerações futuras, e algumas questões da eutanásia). Outras questões já estavam desde antigamente presentes, mas encontram-se fortemente colocadas na consciência geral, e podemos nos perguntar por quê: por exemplo, problemas das minorias, aborto, animais. Não se encontra aqui pelo menos uma das razões pelas quais a ética novamente é tomada de forma importante? A maioria das éticas antigas, por exemplo, as kantianas, tinham em vista apenas aquelas normas que desempenhavam um papel na vida intersubjetiva de adultos contemporâneos e situados em uma proximidade espaço-temporal; e de repente sentimo-nos desorientados em confronto com os problemas do aborto, da pobreza do mundo, das próximas gerações ou da tecnologia genética."

TUGENDHAT, Ernst. Lições sobre ética. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 11-13.

1) O autor refere-se ao grande espaço reservado aos temas éticos nas discussões com nossos amigos? Você poderia fazer uma lista desses temas? Em seguida, escolha um deles e posicione-se.
2) O sentimento de indignação ou de vergonha indica que a participação de uma comunidade moral. Dê um exemplo e explique por quê.
3) Qual é a relação entre política e ética? A partir dessa relação destaque a questão da justiça como um dos temas centrais da ética.

O universo hiperconsumista e suas implicações.

"Denunciar de uma vez todo o universo hiperconsumista não me parece um bom procedimento. Nem tudo é negativo, bem ao contrário. Sobretudo, lançar dardos contra o nosso sistema de vida não é um caminho eficaz para conter os malefícios do excesso de consumismo. Não conseguiremos afastar o influxo deletério do consumo sobre nossa existência com críticas baseadas em princípios morais e intelectuais. Como antídoto contra a paixão consumista, só mesmo paixões rivais. É oportuno recordar a célebre proposição 7 do livro IV da Ética de Spinoza: "Uma afecção só pode ser reduzida ou extirpada por uma afecção contrária e mais forte que a afecção a reduzir". Fazendo o desdobramento dessa análise, o objetivo primordial a ser almejado consiste em oferecer aos indivíduos outras metas, outras iniciativas capazes de mobilizar paixões diferentes daquela do consumo. É desse modo, e só desse modo, que conseguiremos refrear a compulsão de compra.
Mas por que exatamente fixar como meta a redução do modo de vida consumista? O consumismo não é mal em si, mas somente enquanto hipertrofiado ou intumescido, incapaz de atender a todas as aspirações humanas, uma vez que estas não se restringem aos desejos de gozo imediato. Conhecer, aprender, criar, inventar, progredir, ganhar auto-estima, superar a si mesmo: tantas são as obrigações e os ideais que os bens comercializáveis não podem satisfazer.
Estou convencido de que chegará o dia em que a cultura consumista não terá o mesmo impacto, a mesma importância na vida humana. Em todo caso, essa cultura é uma invenção recente na história: seu início remonta ao final do século XIX e ganha amplitude considerável a partir da década de 1950. Ela não passa de um "pequeno parêntese" na sucessão das eras humanas. Como imaginar que uma cultura possa ter uma duração indefinida? Aliás, em que pese os seus méritos nas desprezíveis, a civilização consumista não é capaz de acobertar lacunas notórias. Ela promove a desestruturação dos indivíduos, debilitando-os psicologicamente. A felicidade dos seres não avança na mesma proporção em que se avolumam as riquezas. Em suma, ela não está a altura da grandeza da condição humana. Nesse sentido, mais dia, menos dia, a primazia do consumismo será abrogada. 
Obviamente, ainda não chegamos lá. Nesse momento, só uma minoria do planeta aufere vantagens desse modelo de vida; os demais, fica na porta, impacientes e entusiasmados com a perspectiva de que, brevemente, desfrutarão dos benefícios observados. Contudo, num futuro ainda longínquo, inevitavelmente ocorrerá uma "inversão de valores". Não estou cogitando algo à maneira de um "super homem" ou de uma revolução no modo de produção; mais propriamente, penso em uma reviravolta cultural que promova a reavaliação das prioridades da existência, da hierarquia das finalidades, da função dos prazeres imediatos nesse novo sistema de valores.
Em dado momento, os homens descobrirão o lado "picante" da vida longe do hedonismo consumista, sem que a humanidade tenha de abandonar a idade democrática: organizar-se-á uma espécie de "democracia pós-consumista". A partir daí, será edificado um novo ideal de vida que, sem reatar com o estilo de vida ascético, abdicará da felicidade consumista enquanto eixo central e predominante da existência e traçarão outros caminhos para a felicidade.
Por uma dessas ironias próprias à História, Nietzsche ("Fazei-vos duros") e Marx ("O trabalho, condição primeira da existência!") poderão figurar como profetas, não do super homem e do consumismo, mas da sociedade posterior ao mundo hiperconsumista." 

Prefácio à obra Contribuição à crítica da economia política de Karl Marx.

"Nas minhas pesquisas cheguei à conclusão de que as relações jurídicas, assim como as formas de Estado, não podem ser compreendidas por si mesmas, nem pela dita evolução geral do espírito humano, inserindo-se pelo contrário nas condições materiais de existência de que Hegel, à semelhança dos ingleses e franceses do século XVIII, compreende o conjunto pela designação de 'sociedade civil'; por seu lado, a anatomia da sociedade civil deve ser procurada na economia política. A conclusão geral a que cheguei e que, uma vez adquirida, serviu de fio condutor dos meus estudos, pode formular-se resumidamente assim: na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência. Em certo estágio de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que é a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham movido até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas transformam-se no seu entrave. Surge então uma época de revolução social. A transformação da base econômica altera, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura. Ao considerar tais alterações é necessário sempre distinguir entre a alteração material, que se pode comprovar de maneira cientificamente rigorosa, das condições econômicas de produção, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito, levando-os às suas últimas consequências. Assim como não se julga um indivíduo pela ideia que ele faz de si próprio, não se poderá julgar uma tal época de transformação pela mesma consciência de si; é preciso, pelo contrário, explicar a consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas e as relações de produção. Uma organização social nunca desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela é capaz de conter; nunca relações de produção novas e superiores se lhe substituem antes que as condições que as condições materiais de existência destas relações se produzam no próprio seio da velha sociedade. É por isso que a humanidade só levanta os problemas que é capaz de resolver e assim, numa observação atenta, descobrir-se-á que o próprio problema só surgiu quando as condições materiais para o resolver já existiam ou estavam, pelo menos, em vias de aparecer. Em um caráter amplo, os modos de produção asiático, antigo feudal e burguês moderno podem ser qualificados como épocas progressivas da formação econômica da sociedade. As relações de produção burguesas são a última forma contraditória do processo de produção social, contraditória não no sentido de uma contradição individual, mas de uma contradição que nasce das condições de existência social dos individuais. No entanto, as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam ao mesmo tempo as condições materiais para resolver esta contradição. Com esta organização social termina, assim, a Pré-história da sociedade humana."

Após ler o texto de Marx, responda às questões utilizando também os conceitos aprendidos na leitura do capítulo.
1) "Não é a consciência dos homens que determina o seu ser: é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência." Explique em que sentido essa frase é indicativa do materialismo marxista.
2) Transcreva do texto o que Marx designa por infraestrutura e por superestrutura.
3) O que Marx quer quando afirma que os modos de produção asiático, antigo, feudal e capitalista podem ser qualificados como épocas progressivas?

A condição humana de Hannah Arendt.

"Se compararmos o mundo moderno com o mundo do passado, veremos que a perda da experiência humana acarretada por esta marcha de acontecimentos é extraordinariamente marcante. Não foi apenas e nem sequer basicamente, a contemplação que se tornou experiência inteiramente destituída de significado. O próprio pensamento, ao tornar-se mera 'previsão de consequências', passou a ser função do cérebro, com o resultado que se descobriu que os instrumentos eletrônicos exercem essa função muitíssimo melhor do que nós. A ação logo passou a ser, e ainda é, concebida em termos de fazer e de fabricar, exceto que o fazer, dada a sua mundanidade e inerente indiferença à vida, é agora visto como apenas outra forma de labor, como função mais complicada, mas não mais misteriosa, do processo vital.
No entretempo, demonstramos ser suficiente engenhosos para descobrir meios de atenuar as fadigas e penas da vida, ao ponto em que a eliminação do labor do âmbito das atividades humanas já não pode ser considerada utópica. Pois mesmo, 'labor' é uma palavra muito elevada, muito ambiciosa para o que estamos fazendo ou pensamos que estamos fazendo no mundo em que passamos a viver. O último estágio de uma sociedade de operários, que é a sociedade de detentores de empregos, requer de seus membros um funcionamento puramente automático, como se a vida individual realmente houvesse sido afogada no processo vital da espécie, e a única decisão ativa exigida do indivíduo fosse deixar-se levar, por assim dizer, abandonar a sua individualidade, as dores e as penas de viver ainda sentidas individualmente e aquiescer num tipo funcional de conduta entorpecida e 'tranquilizada'. O problema das modernas teorias do behaviorismo não é que estejam erradas, mas sim que podem vir a tornar-se verdadeiras, que realmente constituem as melhores conceituações possíveis de certas tendências óbvias da sociedade moderna. É perfeitamente concebível que a era moderna, que teve início com mais mortal e estéril que a História jamais conheceu."

terça-feira, 24 de maio de 2016

O cidadão não educado.

"Nos dois últimos séculos [XIX e XX], nos discursos apologéticos sobre a democracia, jamais esteve ausente o argumento segundo o qual o único modo de fazer com que um súdito transforme-se em cidadão é o de lhe atribuir aqueles direitos que os escritores de direito do século passado [XIX] tinham chamado de activae civitatis; com isso, a educação para a democracia surgiria no próprio exercício da prática democrática. Concomitantemente, não antes: não antes como como prescreve o modelo jacobino, segundo o qual primeiro vem a ditadura revolucionária e apenas depois, num segundo tempo, o reino da virtude como amor pela coisa pública, dela não pode privar-se e ao mesmo tempo a promove, a alimenta e reforça. Um dos trechos mais exemplares a esse respeito é o que se encontra no capítulo sobre a melhor forma de governo da Considerações sobre o governo representativo de John Stuart Mill, na passagem em que ele divide os cidadãos em ativos e passivos e esclarece que, em geral, os governantes preferem os segundos (pois é mais fácil dominar súditos dóceis ou indiferentes), mas a democracia necessita dos primeiros. Se devessem prevalecer os cidadãos passivos, ele conclui, os governantes acabariam prazerosamente por transformar seus súditos num bando de ovelhas dedicadas tão somente a pastar o capim uma ao lado da outra (e a não reclamar, acrescento eu, nem mesmo quando o capim é escasso). Isso o levava a propor a extensão do sufrágio às classes populares, com base no argumento de que um dos remédios contra a tirania das maiorias encontra-se exatamente na promoção da participação eleitoral não só das classes acomodadas (que constituem sempre uma minoria e tendem naturalmente a assegurar os próprios interesses exclusivos), mas também das classes populares. Stuart Mill dizia: a participação eleitoral tem um grande valor educativo; é através da discussão política que o operário, cujo trabalho é repetitivo e concentrado no horizonte limitado da fábrica, consegue compreender a conexão existente entre eventos distantes e o seu interesse pessoal e estabelecer relações com cidadãos diversos daqueles com os quais mantêm relações com cidadãos diversos daqueles com os quais mantêm relações cotidianas, tornando-se assim membro consciente de uma comunidade."
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. p. 31-32.

Apologético: Discursos que fazem apologia, defesa de uma doutrina. No contexto, defesa da democracia.
Activae civitatis: Do latim, cidadania ativa, direitos do cidadão.
Jacobino: Na Revolução Francesa, os jacobinos eram os representantes do Terceiro Estado e inspiraram o período do Terror no governo de Robespierre.

1) Por que a passividade do cidadão só interessa ao déspota?
2) Explique a afirmação de Bobbio segundo a qual Stuart Mill desejava estender o direito de voto às classes populares porque, entre outros motivos, a participação eleitoral tem grande valor educativo.
3) O texto de Stuart Mill é datado do século XIX e por isso se refere ao operário cujo trabalho era repetitivo e limitado ao universo da fábrica. No entanto, atualmente as mídias como o celular e a internet permitem o contato imediato de pessoas de qualquer segmento social, ampliando o âmbito da comunicação. Pesquise em grupo os acontecimentos de 2011 nos quais foram usados esses recursos, como o Occupy Wall Street e a Primavera árabe e respondam:
a) Quais eram os objetivos de cada um desses movimentos?
b) Analisem se essas novas mídias poderão vir a ter importância política de agora em diante e por quê.
c) Há quem pense que não estamos "preparados para a democracia" e, portanto, precisamos de tutela até chegar à maioridade política. Para essas pessoas, "o povo brasileiro ainda não sabe votar". Como você avalia essa maneira de pensar? Justifique.

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Por que a política?

"A moral é solitária (ela só vale na primeira pessoa); toda política é coletiva.
É por isso que a moral não poderia fazer as vezes da política, do mesmo modo que a política não poderia fazer as vezes da moral: precisamos das duas, e da diferença entre as duas!
Uma eleição, salvo excepcionalmente, não opõe bons e maus, mas opõe campos, grupos sociais ou ideológicos, partidos, alianças, interesses, opiniões, prioridades, opções, programas...Que a moral também tenha uma palavra a dizer é bom lembrar (há votos moralmente condenáveis). Mas isso não nos poderia fazer esquecer que ela não faz as vezes nem de projeto nem de estratégia. O que a moral propõe contra o desemprego, contra a guerra, contra a barbárie? Ela nos diz que é preciso combatê-los, claro, mas não como temos maiores oportunidades de derrotá-los. Ora, politicamente, é o mínimo que se espera de você. Mas, politicamente, isso não lhe diz nem como defendê-las nem como conciliá-las. Você deseja que israelenses e palestinos tenham uma pátria segura e reconhecida, que todos os habitantes de Kosovo possam viver em paz, que a globalização econômica não se produza em detrimento dos povos e dos indivíduos, que todos os idosos possam ter uma aposentadoria decente, todos os jovens uma educação digna desse nome? A moral aplaude, mas não lhe diz como aumentar nossas possibilidades de, juntos, alcançarmos esses objetivos. E quem pode acreditar que a economia e o livre jogo do mercado bastam para tanto? O mercado só vale para as mercadorias. Ora, o mundo não é uma. Ora, a justiça não é uma. Ora, a liberdade não é uma. Que loucura seria confiar ao mercado o que não é para se comercializar! Quanto às empresas, elas tendem antes de mais nada ao lucro. Não as critico por isso: é a função delas, e desse lucro todos nós necessitamos. Mas quem pode acreditar que o lucro baste para fazer que uma sociedade seja humana? A economia produz riquezas, e riquezas são necessárias, e nunca serão demais. Mas também precisamos de justiça, de liberdade, de segurança, de paz, de fraternidade, de projetos, de ideais... Não há mercado que os forneça. É por isso que é preciso fazer política: porque a moral não basta, porque a economia não basta e, portanto, porque seria moralmente condenável e economicamente desastroso pretender contentar-se com uma e outra.
Por que a política? Porque não somos nem santos nem apenas consumidores, porque somos cidadãos e para que possamos permanecer cidadãos.
Não basta esperar a justiça, a paz, a liberdade, a prosperidade... É preciso agir para defendê-las, para aprimorá-las, o que só se pode fazer eficazmente de forma coletiva e que, por isso, passa necessariamente pela política. Que esta não se reduza nem à moral nem à economia, já insisti o bastante. O que não significa, lembremos para terminar, que ela seja moralmente indiferente ou economicamente sem alcance."
COMTE-SPONVILLE, André. Apresentação da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 34-36.

1) Com base no texto de Comte-Sponville, faça um esquema comparativo entre as características da moral e da política. Em seguida, compare economia e política.
2) Às vezes, no "vale-tudo" da propaganda eleitoral, certos candidatos se dizem "do bem" ou então que são bons maridos, bons pais ou bons empresários: essas qualificações valem para apreciar se serão bons políticos? Justifique a sua resposta.

Razão objetiva versus Razão subjetiva.

"Quando se pergunta ao homem comum para explicar qual o significado do termo razão, a sua reação é quase sempre de hesitação e embaraço. Ao ser pressionado para dar uma resposta, o homem médio dirá que as coisas racionais são as que se mostram obviamente úteis, e que se presume que todo homem racional é capaz de decidir o que é útil para ele. Mas a força que basicamente torna possíveis as ações racionais é a faculdade de classificação, inferência e dedução, não importando qual o conteúdo específico dessas ações: ou seja, o funcionamento abstrato do mecanismo de pensamento. Esse tipo de razão pode ser chamado de razão subjetiva. Relaciona-se essencialmente com meios e fins, com a adequação de procedimentos a propósitos mais ou menos tidos como certos e que presumem autoexplicativos.
Por mais ingênua e superficial que possa parecer esta definição de razão, ela é importante sintoma de uma mudança profunda de concepção verificada no pensamento ocidental no curso dos últimos séculos. Durante longo tempo predominou uma visão diametralmente oposta do que fosse a razão. Esta concepção afirmava a existência da razão não só como uma força da mente individual, mas também do mundo objetivo: nas relações entre os seres humanos e entre classes sociais, nas instituições sociais, e na natureza e suas manifestações. Os grandes sistemas filosóficos, tais como os de Platão e Aristóteles, o escolasticismo e o idealismo alemão, todos foram fundados sobre uma teoria objetiva da razão. Esses filósofos objetivaram desenvolver um sistema abrangente ou uma hierarquia, de todos os seres, incluindo o homem e os seus fins. O grau de racionalidade de uma vida humana podia ser determinado segundo a sua harmonização com essa totalidade. A sua estrutura objetiva, e não apenas o homem e os seus propósitos, era o que determinava a avaliação dos pensamentos e das ações individuais. Esse conceito de razão jamais excluiu a razão subjetiva, mas simplesmente considerou-a como a expressão parcial e limitada de uma racionalidade universal, da qual se derivaram os critérios de medida de todos os seres e as coisas. A ênfase era colocada mais nos fins do que nos meios. O supremo esforço dessa espécie de pensamento foi conciliar a ordem objetiva do 'racional', tal como a filosofia o concebia, com a existência humana, incluindo o interesse por si mesmo e a autopreservação. Platão, por exemplo, idealizou a sua República a fim de provar que aquele que vive à luz da razão objetiva vive também uma vida feliz e bem-sucedida."
HORKHEIMER, Eclipse da razão, p. 11-13.
1) Caracteriza a razão subjetiva, conforme o texto.
2) Caracterize a razão objetiva, conforme o texto.
3) Por que, de acordo com Horkheimer, Platão entendia que "aquele que vive à luz da razão objetiva vive também uma vida feliz e bem-sucedida"?

terça-feira, 17 de maio de 2016

Natureza humana versus condição humana.

Na busca pelo sentido do humano, uma pergunta frequente é: o que há em nós que nos faz humanos, nos tornando singulares em relação a todos os seres da natureza? Em outras palavras: qual é a natureza humana? Nessa pergunta está implícita a ideia de que existe uma essência humana que nos distingue, por exemplo, dos animais, dos vegetais, dos minerais, etc.
Tendo em vista a definição da natureza humana, Aristóteles ressaltou que os humanos são seres racionais, uma vez que aquilo que lhes caracteriza e lhes torna singulares é o fato de serem dotados de razão.
Se somos dotados de uma natureza humana, isso significa que já nascemos com ela. O que fazemos ao longo de nossa vida é transformar em ato potencialidades que legamos dela desde o nascimento. Observando as pessoas, os filósofos procuraram evidências que poderiam caracterizar a realização dessas potencialidades. Para alguns, por exemplo, o ser humano se distingue dos demais seres porque pensa, utiliza a linguagem e a razão (homo sapiens); para outros, a natureza humana reside nas relações econômicas (homo economicus); e há ainda quem afirme que apenas o humano pode criar, fabricar (homo faber); ou trabalhar (homo laborans); ou ainda brincar, jogar (homo ludens), ou nenhum desses aspectos em particular, mas o conjunto deles.
Alguns filósofos, porém, não ficaram satisfeitos com nenhuma das caracterizações de uma suposta natureza humana. Eles afirmaram que o ser humano não é definido por uma característica universal, ou seja, que esteja presente em todos os seres humanos, em qualquer época e lugar, mas por aquilo que cada um faz de si mesmo, nas realizações humanas no mundo. Esses filósofos tiraram o foco da essência humana e o colocaram na existência.
Nessa perspectiva, não há nada universal que defina o humano, e só podemos compreendê-lo observando como os seres humanos vivem e como se relacionam com os demais indivíduos e com as coisas do mundo. Segundo esses filósofos, para saber o que faz dos homens e mulheres seres humanos e não outros seres quaisquer, é mais importante estudar a "condição humana" do que uma suposta natureza humana.
Essa condição refere-se aos fatores históricos e sociais em que o ser humano vive e sobretudo ás ações que exerce sob essa condição, transformando-a sempre. Na ideia de condição humana, portanto, não há uma noção determinada de ser humano, mas uma abertura de sua compreensão, que está de acordo com a diversidade de nossas ações. Os filósofos que pensam em termos de condição humana colocam muito mais ênfase na investigação da existência, porque é aí que podemos conhecê-lo mais profundamente.
A filósofa contemporânea Hannah Arendt compreende essa condição como o exercício do que ela denomina uma vita activa ('vida ativa', em latim), que se desdobra nas três atividades humanas fundamentais: o trabalho, a obra e a ação. O trabalho é a atividade do corpo humano, em seu aspecto biológico. A obra é a atividade da existência, que consiste em transformar a natureza e criar cultura. A ação é uma atividade política, aquilo que os indivíduos realizam entre si. A cada uma dessas atividades corresponde uma condição humana. Ao trabalho corresponde a própria vida, pois ela é a condição para a realização de todas as atividades. À obra corresponde a mundanidade, na medida em que os seres humanos criam um mundo por meio da cultura e é o mundo que possibilita a obra. À ação, por fim, corresponde a pluralidade, pois ela é a condição para que a política possa ser feita por todas as pessoas.
A condição humana é, pois, aquilo que nos permite que, exercendo uma vida ativa, sejamos humanos de fato. Mas, ressalta Arendt, essa noção não explica, não define o que somos; ela nos condiciona, nos dá um horizonte no qual construímos nossa vida, mas não nos determina de modo absoluto. Uma natureza humana só poderia ser conhecida do ponto de vista de uma divindade, de um ser que estivesse acima dos humanos; já as condições humanas podem ser conhecidas, dando aos seres humanos o referencial do qual podem se mover e criar.

Corpo e alma.

Enquanto os filósofos Pré-socráticos investigavam a natureza, a partir do século V a.C. Sócrates põe o ser humano sob o foco do pensamento filosófico grego.Afirma-se que ele adotou como lema de sua prática filosófica a inscrição que ficava no portal do famoso Oráculo de Delfos, templo dedicado ao deus Apolo: "Conhece-te a ti mesmo e conhecerás os homens, o mundo e os deuses". Essa inscrição considera o ser humano como a fonte de todo o conhecimento e o meio pelo qual é possível conhecer os outros, o mundo e até mesmo os deuses. Uma vez que aquela exigência única fosse cumprida por meio da prática da filosofia, para Sócrates, uma forma de autoconhecimento, a vida, examinada e investigada, tornar-se-ia mais digna de ser vivida.
Ainda na Antiguidade, dois filósofos deram importantes contribuições para o pensamento em torno do ser humano: Platão e Aristóteles.
Platão afirmava que o ser humano é composto de um corpo físico material, imperfeito e mortal, e de uma alma, imaterial, perfeita e imortal. Não se pode pensar no ser humano apenas como um corpo nem apenas como alma; ele é a ligação indissolúvel entre os dois. Precisa, no entanto, ser conduzido pela alma, sede da razão e do pensamento, para que sua vida não se perca nas imperfeições. Platão adverte que a ideia de sermos guiados pela alma não significa uma negação do corpo: o bom uso da alma depende da saúde do corpo que possibilita a ginástica da alma, a filosofia. Além disso, uma vez controlados os instintos e as paixões do corpo, a alma pode dedicar-se às ideias. Essa teoria foi a base daquilo que seria chamado depois de "dualismo psicofísico".
Sem se afastar do dualismo corpo-alma exposto por Platão, Aristóteles avançou bastante nos estudos filosóficos sobre o ser humano. Desenvolveu uma teoria na qual distingue os vários atributos da alma, sendo a razão o mais importante deles, por ser encontrada apenas nos seres humanos. Definiu o homem como um "animal racional" e um "animal político".
Ao afirmar isso, Aristóteles quer dizer que o homem é dotado de pensamento e de linguagem. Para designar tal característica, ele usa a palavra grega logos, que tanto significa 'razão', 'pensamento', quanto 'palavra', 'linguagem'. Isso porque os gregos antigos afirmavam que o ser humano só pensa por meio da linguagem, que pensamento e linguagem estão entrelaçados. Dessa primeira definição decorre a segunda: se somos seres de linguagem, se nos comunicamos com aqueles que são iguais a nós, então com eles compartilhamos a vida. Por isso, somos seres sociais, políticos, que não apenas vivem em comunidade, mas que só se realizam plenamente sua humanidade na vida política.
Na Idade Média, a filosofia esteve estreitamente ligada à religião. A Igreja utilizava argumentos filosóficos para reforçar os ensinamentos cristãos. O ser humano era considerado criação e instrumento de Deus. Sendo assim, o mais importante era conhecer aquilo que o criador espera da criatura. A pergunta então não era "quem eu sou?", mas sim "como Deus quer que eu seja".
Entre os séculos XIV e XVI, a situação se modificou. Era a época do Renascimento, movimento de renovação cultural que se difundiu na Europa e que recuperou a valorização das qualidades humanas. Pensadores renascentistas propuseram que o centro das preocupações humanas deixasse de ser Deus (teocentrismo) e passasse a ser o próprio homem (antropocentrismo), como forma de recuperar a "dignidade humana".
A ênfase no ser humano marcou o iluminismo (século XVIII), movimento que reafirmou a capacidade da razão em superar as adversidades do mundo. Com a Revolução Industrial do século XIX, ganhariam forma as preocupações com a "desumanização" das técnicas e da exploração do homem pelo homem na sociedade capitalista, como veremos mais adiante. Os avanços científicos nos séculos XIX e XX, especialmente com o surgimento das várias ciências humanas, trouxeram conhecimentos que atribuíram novo significado às reflexões sobre o humano no campo da filosofia.