quinta-feira, 11 de junho de 2015

A invenção da política

O surgimento da cidade
Quando se afirma que os gregos e romanos inventaram a política, não se quer dizer que, antes deles, não existiam o poder e a autoridade, mas que inventaram o poder e a autoridade propriamente ditos, ou seja, que desfizeram as características que havia anteriormente, de poder despótico ou patriarcal exercido pelo chefe de família sobre um conjunto de famílias a ele ligadas por laços de dependência econômica e militar, por alianças matrimoniais, numa relação pessoal em que o chefe garantia proteção e os súditos ofereciam lealdade e obediência.
Embora, nos começos, gregos e romanos tivessem conhecido esse tipo de organização, um conjunto de medidas foi tomado pelos primeiros dirigentes, os legisladores, de modo a impedir a concentração dos poderes e da autoridade nas mãos de um rei, senhor da terra, da justiça e das armas, representante da divindade.
A propriedade da terra não se tornou propriedade régia ou patrimônio privado do rei nem propriedade comunal ou da aldeia, mas manteve-se como propriedade de famílias independentes, cuja peculiaridade estava em não formarem uma casta fechada em si mesma, porém aberta à incorporação de novas famílias e de indivíduos ou não proprietários enriquecidos no comércio.
Apesar das diferenças históricas na formação da Grécia e de Roma, há três aspectos comuns a ambas e decisivos para a invenção da política. O primeiro é a forma da propriedade da terra; o segundo, o fenômeno da urbanização;o terceiro, o modo de divisão territorial das cidades.
Como a propriedade da terra não pertencia à aldeia nem ao rei, mas às famílias independentes e como as guerras ampliavam o contingente de escravos, formou-se na Grécia e em Roma uma camada pobre de camponeses que migraram para as aldeias, ali se estabeleceram como artesãos e comerciantes, prosperaram, transformaram as aldeias em centros urbanos e passaram a disputar o direito ao poder com as grandes famílias agrárias. Uma luta de classes perpassa a história grega e romana exigindo solução.
A urbanização significou uma complexa rede de relações econômicas e sociais que colocava em confronto não só proprietários agrários, de um lado, e artesãos e comerciantes, de outro, mas também a massa de assalariados da população urbana, os não proprietários, genericamente chamados de "os pobres".
A luta de classe incluía, assim, lutas entre os ricos e lutas entre ricos e pobres. Tais lutas eram decorrentes do fato de que todos os indivíduos participavam das guerras externas, tanto para a expansão territorial como para a defesa de sua cidade, formando as milícias dos nativos da comunidade.
Essa participação militar fazia com que todos se julgassem no direito de intervir, de algum modo, nas decisões econômicas e legais de suas comunidades urbanas sem cidades propriamente ditas.
Os primeiros chefes políticos, também conhecidos como legisladores, introduziram uma divisão no território das cidades, visando diminuir o poderio das famílias ricas agrárias, dos artesãos e comerciantes urbanos ricos e satisfazer as reivindicações dos camponeses pobres e dos artesãos e assalariados urbanos pobres. Em Atenas, por exemplo, a pólis foi subdividida em unidades sociopolíticas denominadas demos; em Roma, em tribus.
Quem nascesse nem demos ou numa tribus, independentemente de sua situação econômica, tinha assegurado o direito de participar direta ou indiretamente das decisões da cidade. No caso de Atenas, todos os naturais do demos tinham o direito de participar diretamente do poder, donde o regime ser uma democracia.
Em Roma, os não proprietários ou os pobres formavam a plebe, que participava indiretamente do poder porque tinha o direito de eleger um representante, o tribuno da plebe, para defender e garantir os interesses plebeus junto aos interesses e privilégios dos que participavam diretamente do poder, os patrícios, que constituíam o populus romanus. O regime político romano era, assim, uma oligarquia.
Os principais traços da invenção da política
Rompendo com o poder despótico, gregos e romanos inventaram o poder político porque:
. separaram a autoridade pessoal privada do chefe de família, senhorio patriarcal e patrimonial, do poder impessoal público, pertencente à coletividade; separaram o privado do público e impediram a identificação do poder político com a pessoa do governante;
. separaram a autoridade militar do poder civil, subordinando a primeira ao segundo. Isso n~
ao significa que em certos casos, como em Esparta e Roma, o poder político não fosse também um poder militar, mas sim que as ações militares deviam ser, primeiro, discutidas e aprovadas pela autoridade política (as assembleias, em Esparta; o Senado, em Roma) e só depois realizadas;
. separaram a autoridade mágico-religiosa do poder temporal laico, impedindo tanto a divinização dos governantes quanto sua transformação em sumos sacerdotes;
. criaram a ideia e a prática da lei como expressão de uma vontade coletiva e pública, definidora dos direitos e deveres para todos os cidadãos, impedindo que fosse confundida com a vontade pessoal de um governante;
. criaram a instituição do erário público ou do fundo público, isto é, dos bens e recursos que pertencem à sociedade e são por ela administrados por meio de taxas, impostos e tributos, impedindo a concentração da propriedade e da riqueza nas mãos dos dirigentes.
. criaram o espaço público, a Assembleia grega e o Senado romano, no qual os que possuíam direitos iguais de cidadania discutiam suas opiniões, defendiam seus interesses, deliberavam em conjunto e decidiam por meio do voto, podendo, também pelo voto, revogar uma decisão tomada. É esse o coração da invenção política. De fato, a marca do poder despótico era a deliberação e a decisão a portas fechadas. A política, ao contrário, introduz a prática da publicação da publicidade, a exigência de que a sociedade seja informada, conheça as deliberações e participe da tomada de decisão.
Gregos e romanos tornaram  a política inseparável do tempo e também conceberam a ação política ligada à noção do possível. Com isso, não só conceberam e praticaram a política como ação humana (e não como cumprimentos de decretos divinos perenes ou eternos), como também inauguraram a ideia e a prática da criação contínua da realidade social ou de sua transformação, isto é, a história.
O significado da invenção da política
Para responder às diferentes formas assumidas pelas lutas de classes, a política é inventada de um modo que, a cada solução encontrada, um novo conflito ou uma nova luta podem surgir, exigindo novas soluções. Em lugar de reprimir os conflitos pelo uso da força e da violência das armas, a política aparece como trabalho legítimo dos conflitos, de tal modo que o fracasso nesse trabalho é a causa do uso da força e da violência.
A democracia ateniense e as oligarquias de Esparta e da República romana fundaram a ideia e a prática da política na cultura ocidental. Eis por que os historiadores gregos, quando a Grécia caiu sob o domínio do império de Alexandre da Macedônia, e os historiadores romanos, quando Roma sucumbiu sob o domínio do império dos césares, falaram em corrupção e decadência da política: para eles, o desaparecimento da pólis e da res pública significava o retorno ao despotismo e o fim da vida política propriamente dita.
Evidentemente, não devemos cair em anacronismos, supondo que os gregos e romanos instituíram uma sociedade e uma política cujos valores e princípios fossem idênticos aos nossos.
Em primeiro lugar, a economia era agrária e escravista, de sorte que uma parte da sociedade, os escravos, estava excluída dos direitos políticos e da vida política. Em segundo lugar, a sociedade era patriarcal e, consequentemente, as mulheres estavam excluídas da cidadania e da vida pública. A exclusão atingia também os estrangeiros e os miseráveis.
A cidadania era exclusiva dos homens adultos livres nascidos no território da cidade. Além disso, a diferença de classe social nunca era apagada, mesmo que os pobres tivessem direitos políticos. Assim, para muitos cargos, o pré-requisito da riqueza vigorava e havia mesmo atividades portadoras de prestígio que somente os ricos podiam realizar. Era o caso, por exemplo, da liturgia grega e do evergetismo romano, isto é, de grandes doações em dinheiro à cidade para festas, construção de templos e teatros, patrocínio de jogos esportivos, de trabalhos artísticos, etc.
O que procuramos apontar não foi a criação de uma sociedade sem classes, justa e feliz, mas a invenção da política como solução e resposta que uma sociedade oferece para suas diferenças, seus conflitos e suas contradições, sem escondê-los sob a sacralização do poder e do governante e sem fechar-se à temporalidade e às mudanças.
Finalidade da vida política 
Para os gregos, a finalidade da vida política era a justiça na comunidade. A noção de justiça fora, inicialmente, elaborada em termos míticos com base em três figuras principais: thémis, a lei divina trazida pela deusa Thémis, que institui a ordem do Universo; kósmos, a ordem universal estabelecida pela lei divina; diké, a justiça que a deusa Diké isntitui entre as coisas e entre os homens, no respeito às leis divinas e à ordem cósmica. Pouco a pouco, a noção de diké identifica-se com a regra natural para a ação das coisas e dos homens e o critério para julgá-las.
A ideia de justiça se refere, portanto, a uma ordem divina e natural, que regula, julga e pune as ações das coisas e dos seres humanos. A justiça é a lei e a ordem do mundo, isto é, da natureza ou physis, e ordem, kósmos, constituem assim o campo da ideia de justiça.
A invenção da política exigiu que as explicações míticas fossem afastadas, thémis e diké deixaram de ser vistas como duas deusas que impunham ordem e leis ao mundo e aos seres humanos, passando a significar as causas que fazem haver ordem, lei e justiça na natureza e na pólis. Justo é o que segue a ordem natural e respeita a lei natural.
Mas a pólis existe por natureza ou por convenção entre os homens? A justiça e a lei política são naturais ou convencionais? Essas indagações colocam, de um lado, os sofistas, defensores do caráter convencional da justiça e da lei e, de outro, Platão e Aristóteles defensores do caráter natural da justiça e da lei.
Por que política?
"A moral é solitária (ela só vale na primeira pessoa); toda política é coletiva.
É por isso que a moral não poderia fazer as vezes de política, do mesmo modo que a política não poderia fazer as vezes de moral: precisamos das duas, e da diferença entre as duas!
Uma eleição, salvo excepcionalmente, não opõe bons e maus, mas opõe campos, grupos sociais ou ideológicos, partidos, alianças, interesses, opiniões, prioridades, opções, programas... Que a moral também tenha uma palavra a dizer é bom lembrar (há votos moralmente condenáveis). Mas isso não nos poderia fazer esquecer que ela não faz as vezes nem de projeto nem de estratégia. O que a moral propõe contra o desemprego, contra a guerra, contra a barbárie? Ela nos diz que é preciso combatê-los, claro, mas não como temos maiores oportunidades de derrotá-los. Ora, politicamente, é o como que importa. Você é a favor da justiça e da liberdade? Moralmente falando, é o mínimo que se espera de você. Mas, politicamente, isso não lhe diz nem como defendê-las nem como conciliá-las. Você deseja que israelenses e palestinos tenham uma pátria segura  e reconhecida, que todos os habitantes de Kosovo possam viver em paz, que a globalização econômica não se produza em detrimento dos povos e dos indivíduos, que todos os idosos possam ter uma aposentadoria decente, todos os jovens uma educação digna desse nome? A moral aplaude, mas não lhe diz como aumentar nossas possibilidades de, juntos, alcançar esses objetivos. E quem pode acreditar que a economia e o livre jogo de mercado bastam para tanto? O mercado só vale para as mercadorias. Ora, o mundo não é uma. Ora, a justiça não é uma. Ora, a liberdade não é uma. Que loucura seria confiar ao mercado o que não é para se comercializar! Quanto às empresas, elas tendem antes de mais nada ao lucro. Não as critico por isso: é a função delas, e desse lucro todos nós necessitamos. Mas quem pode acreditar que o lucro baste para fazer que uma sociedade seja humana? A economia produz riquezas, e riquezas são necessárias, e nunca serão demais. Mas também precisamos de justiça, de liberdade, de segurança, de paz, de fraternidade, de projetos, de ideais.... Não há mercado que os forneça. É por isso que é preciso fazer política porque a moral não basta, porque a economia não basta e, portanto, porque seria moralmente condenável e economicamente desastroso pretender contentar-se com uma e outra.
Por que a política? Porque não somos nem santos nem apenas consumidores, porque somos cidadãos, porque devemos ser cidadãos e para que possamos permanecer cidadãos.
Não basta esperar a justiça, a paz, a liberdade, a prosperidade.... É preciso agir para defendê-las, para aprimorá-las, o que só se pode fazer eficazmente de forma coletiva e que, por isso, passa necessariamente pela política. Que esta não se reduza nem à moral nem à economia, já insisti o bastante. O que não significa lembremos para terminar, que ela seja moralmente indiferente ou economicamente sem alcance". COMTE-SPONVILLE, André. Apresentação da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 34-36.
A posição dos sofistas
Para os sofistas, a pólis nasce por convenção entre os seres humanos quando percebem que lhes é mais útil a vida em comum do que em isolamento. Convencionam regras de convivência que se tornam leis, nómos. A justiça é o consenso quanto às leis e a finalidade da política é criar e preservar esse consenso.
Se a pólis e as leis são convenções humanas, podem mudar, desde que haja mudança nas circunstâncias. A justiça será não só conservar as leis mas também permitir sua mudança sem que isso destrua a comunidade política, e a única maneira de realizar mudanças sem destruição da ordem política é o debate para chegar ao consenso, a expressão pública da vontade da maioria, obtida pelo voto dos cidadãos reunidos em assembleia.
Por esse motivo, os sofistas se apresentavam como professores da arte da discussão e da persuasão pela palavra (retórica). Mediante remuneração, ensinavam os jovens a discutir em público, a defender e combater opiniões, ensinando-lhes argumentos persuasivos para os prós e os contras em todas as questões.
A finalidade da política era a justiça entendida como concórdia entre os cidadãos, conseguida na discussão pública de opiniões e a expressão persuasiva dos argumentos antagônicos deviam levar à vitória do interesse mais bem argumentado, aprovado pelo voto da maioria.
Em oposição aos sofistas, Platão e Aristóteles afirmam o caráter natural da pólis e da justiça. Embora concordem nesse aspecto, diferem no modo como concebem a própria justiça.
A posição de Platão
Para Platão, os seres humanos e a pólis possuem a mesma estrutura. Os humanos são dotados de três almas ou três princípios de atividades: a alma concupiscente ou desejante (situada nas entranhas ou no baixo-ventre), que busca satisfação dos apetites do corpo, tanto os necessários à sobrevivência como os que, simplesmente, causam o prazer; a alma irascível ou colérica (situada no peito ou no coração), que defende o corpo contra as agressões do meio ambiente e de outros humanos, reagindo à dor na proteção de nossa vida; e a alma racional ou intelectual (situada na cabeça), que se dedica ao conhecimento.
Também a pólis possui uma estrutura tripartite, formada por três classes sociais: a classe econômica dos proprietários de terra, artesãos e comerciantes, que garante a sobrevivência material da cidade;  a classe dos guerreiros, responsável pela defesa da cidade; e a classe dos magistrados, que garante o governo da cidade sob as leis.
Um homem, diz Platão, é injusto quando a alma concupiscente (os apetites e prazeres) é mais forte do que as outras duas, dominando-as. Também é injusto quando a alma colérica (a agressividade) é mais poderosa do que a racional, dominando-a.
O que é, pois, o homem justo? Aquele cuja alma racional (pensamento e vontade) é mais forte do que as outras duas almas, impondo à concupiscente a virtude da temperança ou moderação, e à colérica, a virtude da coragem, que deve controlar a concupiscência. O homem justo é o homem virtuoso; a virtude, domínio racional sobre o desejo e a cólera. A justiça ética é a hierarquia das almas, a racional, superior, que domina as inferiores.
O que é a justiça política? Essa mesma hierarquia mas aplicada à comunidade, os sábios legisladores devem governar, os militares, subordinados aos legisladores, devem defender a cidade, e os membros da classe econômica, subordinados aos legisladores, devem assegurar a sobrevivência da pólis.
Como realizar a cidade justa? Pela educação dos cidadãos, homens e mulheres (Platão nã exclui as mulheres da política e critica os gregos por exclui-las).
A cidade justa é governada pelos filósofos, administrada pelos cientistas, protegida pelos guerreiros e mantida pelos produtores. Cada classe cumprirá sua função para o bem da pólis, racionalmente dirigida pelos filósofos.
Em contrapartida, a cidade injusta é aquela na qual o governo está nas mãos dos proprietários, que não pensam no bem comum da pólis e lutarão por interesses econômicos particulares, ou na dos militares, que mergulharão a cidade em guerras para satisfazer seus desejos particulares de honra e glória. Somente os filósofos têm como interesse o bem geral da pólis e somente eles podem governá-la com justiça.
A posição de Aristóteles
Aristóteles elabora uma teoria política diversa da dos sofistas e de Platão.
Para demonstrar o que é a justiça, diz ele, precisamos distinguir dois tipos de bens: os partilháveis e os participáveis. Um bem é partilhável quando é uma quantidade que pode ser dividida e distribuída, a riqueza é um bem partilhável. Um bem é participável quando é uma qualidade indivisível, que não pode ser repartida nem distribuída, podendo apenas ser participada, o poder político é um bem participável.
Existem, pois, dois tipos de justiça na cidade: a distributiva, referente aos bens econômicos partilháveis, e a participativa, referente ao poder político participável. A cidade justa saberá distinguir esses dois tipos de justiça e realizar ambos.
A justiça distributiva consiste em dar a cada um o que lhe é devido e sua função é dar a cada um o que lhe é devido e sua função é dar desigualmente aos desiguais para torná-los iguais. Suponhamos, por exemplo, que a pólis esteja atravessando um período de fome em decorrência de secas ou enchentes e que adquira alimentos para distribuí-los a todos.
Para ser justa, a cidade não poderia reparti-los de modo igual para todos. De fato, aos que são pobres, deve doá-los, mas, aos que são ricos, deve vendê-los, de modo a conseguir fundos para aquisição de novos alimentos. Se doar a todos ou vender a todos, será injusta. Também será injusta se atribuir a todos as mesmas quantidades de alimentos, pois dará quantidades iguais para famílias desiguais, umas mais numerosas do que as outras.
Em suma, é injusto tratar igualmente os desiguais para que recebam os partilháveis segundo suas condições e necessidades.
A função ou finalidade da justiça distributiva sendo a de igualar os desiguais, dando-lhes desigualmente os bens, implica afirmar que numa cidade em que a diferença entre ricos e pobres é muito grande faz vigorar a injustiça, pois não dá a todos o que lhes é devido como seres humanos.
Na cidade injusta, as leis, em lugar de permitirem aos pobres o acesso às riquezas (por meio de limitações impostas à extensão da propriedade, de fixação da boa remuneração aos trabalhadores pobres, de impostos e tributos que recaiam sobre os ricos apenas, etc.), vedam-lhes tal direito.
Ora, somente os que não são forçados às labutas ininterruptas para a sobrevivência são capazes de uma vida plenamente humana e feliz. A cidade injusta, portanto, impede que uma parte dos cidadãos tenha assegurado o direito à vida boa.
Enquanto Platão se preocupa com a educação e formação do dirigente político, o governante filósofo, Aristóteles se interessa pela qualidade das instituições políticas (assembleias, tribunais, forma da coleta de impostos e tributos, distribuição da riqueza, organização do exército, etc.).
Com isso, ambos legam para as teorias políticas subsequentes duas maneiras de conceber onde se situa a qualidade justa da cidade: platonicamente, essa qualidade depende das virtudes do dirigente, aristotelicamente, das virtudes das instituições.
Ética e política   
Se a política tem como finalidade a vida justa e feliz, isto é, a vida propriamente humana digna de seres livres, então é inseparável da ética. De fato, para os gregos, era inconcebível a ética fora da comunidade política, pois nela a natureza ou essência humana encontrava sua realização mais alta.
Platão identificara a justiça no indivíduo e a justiça na pólis. Aristóteles subordina o bem do indivíduo ao Bem Supremo da pólis. Esse vínculo interno entre ética  e política significava que as qualidades das leis e do poder dependiam das qualidades morais dos cidadãos. Somente na cidade boa e justa os homens podem ser bons e justos, e somente homens bons e justos são capazes de instituir uma cidade boa e justa.

terça-feira, 9 de junho de 2015

Três concepções de Ciência

As várias concepções de ciência não são sucessivas, isto é, podem coexistir numa mesma época, ainda que uma delas prevaleça sobre as outras como a mais aceita ou praticada. Assim, por exemplo, Galileu, criador da filosofia moderna, é um racionalista contemporâneo do empirista Boyle, um dos criadores da química moderna.
A concepção racionalista, que se estende de Platão até o final do século XVII, afirma que a ciência é um conhecimento racional dedutivo e demonstrativo como a matemática. Portanto, seria capaz de provar a verdade necessária e universal de seus enunciados e resultados, sem deixar nenhuma dúvida.
Uma ciência é a unidade sistemática de axiomas, postulados e definições e demonstrações. Enquanto os três primeiros determinam a natureza e as propriedades do objeto investigado, as demonstrações provam as relações de causalidade que regem esse objeto.
O objeto científico é uma representação intelectual universal, necessária e verdadeira das coisas representadas, e corresponde à própria realidade, porque esta é racional e inteligível em si mesma. As experiências científicas são realizadas apenas para verificar e confirmar as demonstrações teóricas, e não para produzir o conhecimento do objeto, pois este é conhecido exclusivamente pelo pensamento. O objeto científico é matemático, porque a realidade tem uma estrutura matemática, ou, como disse Galileu, "o grande livro da natureza está escrito em caracteres matemáticos",
A concepção empirista vai da medicina grega e do pensamento de Aristóteles até o final do século XIX. Ela afirma que a ciência é uma interpretação dos fatos baseada em observações e experimentos que permitem estabelecer induções e que, ao término, oferecem a definição do objeto, suas propriedades e suas leis de funcionamento. A teoria científica resulta das observações e dos experimentos, de modo que a experiência não tem simplesmente a função de verificar e confirmar conceitos, mas a de produzi-los. Eis por que, nesta concepção, sempre houve grande cuidado para estabelecer métodos experimentais rigorosos, pois deles dependia a formulação da teoria e a definição da objetividade investigada.
Essas duas concepções de cientificidade tinham o mesmo pressuposto, embora o realizassem de maneiras diferentes. Ambas consideravam que  a teoria científica era uma explicação e uma representação verdadeira da própria realidade, tal como esta é em si mesma. A ciência era uma espécie de raio X da realidade.
A concepção racionalista era hipotético-dedutiva, isto é, definia o objeto e suas leis e disso deduzia propriedades, efeitos posteriores, previsões. A concepção empirista era hipotético-indutiva, isto é, apresentava suposições sobre o objeto, realizava observações e experimentos, e chegava a definição dos fatos, às suas leis, às suas propriedades, aos seus efeitos posteriores e previsões.
A concepção construtivista, iniciada no século XX, considera a ciência uma construção de modelos explicativos para a realidade, e não uma representação desta. O cientista combina dois procedimentos, um vindo do racionalismo, outro vindo do empirismo, e a eles acrescenta um terceiro, vindo da ideia de conhecimento aproximativo e corrigível.
Como o racionalista, o cientista construtivista exige que o método lhe permita estabelecer axiomas, postulados, definições e deduções sobre o objeto científico. Como o empirista, o construtivista exige que a experimentação guie e modifique axiomas, postulados, definições e demonstrações. No entanto, porque considera o objeto uma construção lógico-intelectual e uma construção experimental feita em laboratório, o cientista não espera que seu trabalho apresente a realidade em si mesma. Em vez disso, espera que seu trabalho ofereça estruturas e modelos de funcionamento da realidade, explicando os fenômenos observados. Não espera, portanto, apresentar uma verdade absoluta, e sim uma verdade aproximada que pode ser corrigida, modificada, abandonada por outra mais adequada aos fenômenos. São três as exigências de seu ideal de cientificidade:
1. que haja coerência (isto é, que não haja contradições) entre os princípios que orientam a teoria;
2. que os modelos dos objetos (ou estruturas dos fenômenos) sejam construídos com base na observação e na experimentação;
3. que os resultados obtidos possam alterar não só os modelos construídos, mas também os próprios princípios da teoria, corrigindo-a.
Diferenças entre a ciência antiga e a clássica ou moderna
Quando apresentamos os ideais de cientificidade, dissemos que tanto o ideal racionalista como o empirista se iniciaram com os gregos. Isso, porém, não significa que a concepção antiga e a clássica ou moderna (século XVII) de ciência sejam idênticas.
Entre as várias diferenças, devemos mencionar uma, talvez a mais profunda: a ciência antiga era uma ciência teorética, ou seja, apenas contemplava os seres naturais, sem jamais imaginar intervir neles ou sobre eles por meios técnicos; já a ciência clássica visa não só ao conhecimento teórico, mas sobretudo à aplicação prática ou técnica. Francis Bacon dizia que "saber é poder", e Descartes escreveu que a "ciência deve tornar-nos senhores da natureza".
A ciência clássica ou moderna nasce vinculada à ideia de intervir na natureza, de conhecê-la não apenas para contemplar a verdade, mas para apropriar-se da natureza, para controlá-la e dominá-la. Numa sociedade em que o capitalismo está surgindo e, para acumular capital, deve ampliar a capacidade do trabalho humano para modificar e explorar a natureza, a nova ciência será inseparável da técnica.
Na verdade, é mais correto falar em "tecnologia" do que em "técnica". A técnica é um conhecimento empírico que, graças à observação, elabora um conjunto de receitas e práticas para agir sobre as coisas. A tecnologia, porém, é um saber teórico que se aplica na prática. 
Por exemplo, um relógio de sol é um objeto técnico que serve para marcar horas seguindo o movimento solar no céu. Um cronômetro, porém, é um objeto tecnológico: por um lado, sua construção pressupõe conhecimentos teóricos sobre as leis do movimento (as leis do pêndulo) e, por outro, seu uso altera a percepção empírica e comum dos objetos, pois serve para medir aquilo que nossa percepção não consegue alcançar. Uma lente de aumento é um objeto técnico, mas o telescópio e o microscópio são objetos tecnológicos, pois sua construção pressupõe o conhecimento das leis científicas definidas pela óptica. Em outras palavras, um objeto é tecnológico quando sua construção pressupõe um saber científico e quando seu uso interfere nos resultados das pesquisas científicas (por exemplo, o uso do telescópio modifica a astronomia e o do microscópio, a biologia). A ciência moderna tornou-se inseparável da tecnologia.
As mudanças científicas
Vimos até aqui duas grandes mudanças na ciência. A primeira delas se refere à passagem do racionalismo e do empirismo ao construtivismo. De um ideal de cientificidade que se baseia na ideia de ciência como uma representação da realidade tal como ela é em si mesma, passou-se a um ideal de cientificidade que se baseia na ideia de que o objeto científico é um modelo construído e não uma representação do real; uma aproximação sobre o modo de funcionamento da realidade, mas não o conhecimento absoluto dela. A segunda mudança refere-se à passagem da ciência antiga à ciência clássica ou moderna. Por que houve tais mudanças no pensamento científico?
Durante certo tempo, julgou-se que a ciência (como a sociedade) evolui e progride. Evolução e pregresso são duas ideias muito recentes, datam dos séculos XVIII e XIX, mas muito aceitas pelas pessoas. Basta ver o lema da bandeira brasileira para perceber como as pessoas acham natural falar em "Ordem e Progresso".
As noções de evolução e de progresso partem da suposição de que o tempo é uma linha contínua e homogênea. O tempo seria uma sucessão contínua de momentos, períodos, épocas, que iriam se somando uns aos outros, acumulando-se de tal modo que o que acontece depois é o resultado melhorado do que aconteceu antes. Contínuo e cumulativo, o tempo traria um aperfeiçoamento de todos os seres (naturais e humanos).
Evolução e progresso são a crença na superioridade do presente em relação ao passado e do futuro em relação ao presente. Assim, a física galilaico-newtoniana seria superior à aristotélica, e a física quântica seria superior à de Galileu e à de Newton. Pelo mesmo raciocínio, os europeus civilizados seriam, por sua evolução tecnológica, superiores aos africanos e aos índios, que teriam ficado "parados" num tempo arcaico não evoluído.
Evolução e progresso também supõem o tempo como uma série linear de momentos ligados por relações de causa e efeito, em que o passado é causa e o presente, efeito, vindo a tornar-se causa do futuro. Vemos essa ideia aparecer quando, por exemplo, livros de história apresentam as "influências" que um acontecimento anterior teria tido sobre outro, posterior.
Evoluir e progredir pressupõem uma concepção da história semelhante à que a biologia apresenta quando fala em germe, semente,  larva ou, atualmente, gene. O germe, a semente, a larva ou o gene são entes que contêm em si mesmos tudo o que lhes acontecerá, ou seja, a história de um ser nada mais é do que o desenvolver pleno daquilo que ele já era potencialmente.
Essa ideia encontra-se presente, por exemplo, na distinção entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Quando digo que um país é ou está desenvolvido, digo que sei que alcançou a finalidade à qual estava destinado desde que surgiu. Quando digo que um país é ou está subdesenvolvido, estou dizendo que a finalidade, que é a mesma para ele e para o desenvolvido, ainda não foi, mas deverá ser alcançada em algum momento. Não por acaso, as expressões "desenvolvido" e "subdesenvolvido" foram usadas para substituir duas outras, tidas como ofensivas e agressivas: países "adiantados" e países "atrasados", isto é, países "evoluídos" e "não evoluídos", países "com progresso" e "sem progresso".
Em resumo, evolução e progresso pressupõem continuidade temporal, acumulação causal dos acontecimentos, superioridade do futuro e do presente com relação ao passado, existência de uma finalidade a ser alcançada. Supunha-se que as mudanças científicas indicavam evolução ou progresso dos conhecimentos humanos.
Desmentindo a evolução e o progresso científicos
A filosofia das ciências, estudando as mudanças científicas, impôs um desmentido às ideias de evolução e progresso (bem como às de atraso e regressão). O que a filosofia das ciências compreendeu foi que as elaborações científicas e os ideais de cientificidade são diferentes e descontínuos.
Quando, por exemplo, comparamos a geometria clássica ou euclidiana (que opera com o espaço tridimensional), vemos que não se trata de duas etapas ou de duas fases sucessivas da mesma ciência geométrica, e sim de duas geometrias diferentes, com princípios, conceitos, objetos, demonstrações completamente diferentes. Não houve evolução e progresso de uma para outra, pois são duas geometrias diversas, e não geometrias sucessivas.
Quando comparamos as físicas de Aristóteles, Galileu-Newton e Einstein, não estamos diante de uma mesma física, que teria evoluído ou progredido, mas diante de três físicas diferentes, baseadas em princípios, conceitos, demonstrações, experimentações e, no caso das duas últimas, em tecnologias completamente diferentes. Em cada uma delas, os métodos empregados são diferentes; em cada uma delas, o que se deseja conhecer é diferente. E o mesmo pode ser dito de todas as ciências.
Verificou-se, portanto, uma descontinuidade e uma diferença temporal entre as teorias científicas como consequência não de uma forma mais evoluída, mais progressiva ou melhor de fazer ciência, mas como resultado de diferentes maneiras de conhecer e construir os objetos científicos, de elaborar os métodos e inventar tecnologias. O filósofo Gaston Bachelard criou a expressão ruptura epistemológica para explicar essa descontinuidade no conhecimento.

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Três grandes concepções filosóficas da liberdade

Na história das ideias ocidentais, necessidade e contingência foram representadas por figuras da mitologia. A primeira, pelas três Parcas ou Moiras, representando a fatalidade, isto é, o destino inelutável de cada um de nós, do nascimento à morte.
Uma da Parcas ou Moiras era representada fiando o fio de nossa vida, enquanto a outra o tecia e a última o cortava, simbolizando a morte.
A contingência (ou o acaso) era representada pela Fortuna, mulher volúvel e caprichosa, que trazia nas mãos uma roda, fazendo-a girar de tal modo que quem estivesse no alto (a boa fortuna ou boa sorte) caísse (infortúnio ou má sorte) e quem estivesse embaixo fosse elevado.
Inconstante, incerta e cega, a roda da Fortuna era a pura sorte, boa ou má, contra a qual nada se poderia fazer, como na música de Chico Buarque: "Eis que chega a roda viva / e carrega o destino pra lá".
As teorias éticas procuraram sempre enfrentar o duplo problema da necessidade e da contingência, definindo o campo da liberdade possível.
As concepções de Aristóteles e de Sartre
A primeira grande teoria filosófica da liberdade é exposta por Aristóteles em sua obra Ética a Nicômaco e, com variantes, permanece ao longo dos séculos. Nessa concepção, a liberdade se opõe ao que é condicionado externamente (necessidade) e ao que acontece sem escolha deliberada (contingência).
Diz Aristóteles que é livre aquele que tem em si mesmo o princípio para agir ou não agir. A liberdade é concebida como o poder pleno e incondicional da vontade para determinar a si mesma. É pensada, também, como uma capacidade que não encontra obstáculos para se realizar nem é forçada por coisas alguma para agir.
Além de distinguir entre o necessário e o contingente, Aristóteles também distingue o contingente do possível: o primeiro é o puro acaso; o segundo é o que pode acontecer desde que um ser humano delibere e decida realizar uma ação. Assim, na concepção aristotélica, a liberdade é o princípio para escolher entre alternativas possíveis, realizando-se como decisão e ato voluntário.
Contrariamente à necessidade e à contingência, sob os quais o agente sofre a ação de uma causa externa que o obriga a agir de determinada maneira no ato voluntário livre o agente é causa de si, isto é, causa integral de sua ação. Sem dúvida, seria possível dizer que a vontade livre é determinada pela razão ou pela inteligência; nesse caso, seria preciso admitir que não é causa de si ou incondicionada, mas que é causada pelo raciocínio ou pelo pensamento.
No entanto, como disseram os filósofos posteriores a Aristóteles, a inteligência inclina a vontade para certa direção, mas não a obriga nem a constrange, tanto assim, que podemos agir na direção contrária à indicada pela inteligência ou razão. É por ser livre e incondicionada que a vontade pode seguir ou não os conselhos da consciência. Na tradição racionalista, a liberdade será ética quando o exercício da vontade estiver em harmonia com a direção apontada pela razão.
Em sua obra O ser e o nada, o filósofo francês Jean-Paul Sartre levou essa concepção ao ponto limite. Para ele, a liberdade é a escolha incondicional que o próprio homem faz de seu ser e de seu mundo. Quando julgamos estar sob o poder de forças externas mais poderosas do que nossa vontade, esse julgamento é uma decisão livre, pois outros homens, nas mesmas circunstâncias, não se curvaram nem se resignaram.
Em outros termos, para Sartre, conformar-se ou resignar-se é uma decisão livre, tanto quanto não se resignar nem se conformar. Quando dizemos que não podemos fazer alguma coisa porque estamos fatigados, a fadiga é uma decisão nossa, tanto assim que outra pessoa, nas mesmas circunstâncias, poderia decidir não se sentir cansada e agir. Da mesma maneira, quando dizemos estar enfraquecidos e por isso não temos forças para fazer alguma coisa, a fraqueza é uma decisão nossa, pois outro poderia, nas mesmas circunstâncias, não se considerar fraco e agir.
Por isso, Sartre faz uma afirmação aparentemente paradoxal, dizendo que "estamos condenados à liberdade". Qual o paradoxo? Identificar liberdade e condenação, isto é, dois termos incompatíveis, pois é livre quem não está condenado.
O que Sartre pretende dizer? Que, para os humanos, a liberdade é como a necessidade e a fatalidade: não podemos escapar dela. É ela que define a humanidade dos humanos, sem escapatória.
A concepção que une necessidade e liberdade 
A segunda concepção da liberdade foi, inicialmente desenvolvida no período helenístico pelo estoicismo. Essa concepção, modificada em vários aspectos, ressurge no século XVII com Espinosa e, no século XIX, com Hegel. Nela é conservada a ideia aristotélica de que a liberdade é a autodeterminação, assim como a ideia de que é livre aquele que age sem ser forçado nem constrangido por nada ou por ninguém e, portanto, age impulsionado espontaneamente por uma força interna ao seu próprio ser.
No entanto, diferentemente de Aristóteles e de Sartre, esses filósofos não situam a liberdade no ato de escolha realizado pela vontade individual, separada da necessidade e oposta a ela. Eles a colocam na atividade de cada um como parte de um todo necessário, o qual age livremente porque age necessariamente. Necessário, aqui, é aquilo que age apenas pela força interna de sua própria natureza.
O todo pode ser a natureza (no caso dos estoicos), a substância (no caso de Espinosa) ou o espírito como história (no caso de Hegel). Em qualquer dos casos, natureza, substância e espírito são a totalidade como poder absoluto de ação, agindo segundo seus próprios princípios. Como nada exterior obriga a natureza, a substância ou o espírito agir, eles são livres, pois agem, apenas por seu poder interno.
No entanto, visto que essa ação provém da essência ou do próprio ser do todo, sua ação não é contingente nem meramente possível, mas necessária. Em outras palavras, é porque o todo é o que é e possui o ser que possui que ele age da maneira como age. Seu agir é uma necessidade livre ou uma liberdade necessária porque a necessidade não é um poder externo que obriga a liberdade a agir, mas é apenas a lei interna que a própria liberdade criou para sua própria ação.
Ou seja, essa totalidade, necessária e livre em si mesma, instaura, pela ação de sua liberdade, leis e normas necessárias para toda a realidade ou para todas as suas partes (os indivíduos constituídos por ela).
Isso significa que a liberdade não é um poder incondicionado para escolher, a natureza não escolhe, a substância não escolhe, o espirito não escolhe, mas é o poder do todo para agir em conformidade consigo mesmo, sendo necessariamente o que é e fazendo necessariamente o que faz.
Como podemos observar, essa concepção não mantém a oposição entre a liberdade e necessidade, mas afirma que a necessidade é a maneira pela qual a liberdade do todo se manifesta. Em outras palavras, a totalidade é livre porque se põe a si mesma na existência e define por si mesma as leis e as regras de sua atividade, e é necessária porque tais leis e regras exprimem necessariamente o que ela é e faz. Liberdade não é escolher e deliberar, mas agir ou fazer alguma coisa em conformidade com a natureza do agente que, no caso, é o todo.
O que é, então, a liberdade humana enquanto o homem é uma parte constituída pelo todo e que age no interior do todo?

São duas as respostas a essa questão:
1. a primeira (dada pelos estoicos e por Hegel) afirma que o todo é racional e que suas partes também o são, sendo livres quando agirem em conformidade com as leis racionais do todo, para o bem da totalidade;

2. a segunda (dada por Espinosa) afirma que as partes são da mesma essência que o todo e, portanto, são racionais e livres como ele, dotadas de força interior para agir por si mesmas, de sorte que a liberdade é tomar parte ativa na atividade do todo.
Tomar parte ativa significa, por um lado, conhecer as condições e causas estabelecidas pelo todo e o modo como elas determinam nossas ações, e, por outro, em virtude de tal conhecimento, não ser um joguete das condições e causas que atuam sobre nós, mas agir sobre elas também. Não somos livres para escolher tudo, mas o somos para fazer tudo quanto esteja de acordo com nosso ser e com nossa capacidade de agir, graças ao conhecimento que temos de nós mesmos e das circunstâncias.
Para os estoicos, o homem livre é aquele cuja razão conhece a necessidade natural e a necessidade de sua própria natureza e tem força para guiar e dirigir a vontade para que esta exerça um poder absoluto sobre a irracionalidade dos instintos e impulsos, isto é, sobre as paixões.
Para Espinosa, o homem livre é aquele que age como causa interna, completa e total de sua ação, decorrente do desenvolvimento espontâneo da essência racional do agente. Em outras palavras, assim como o todo age livremente pela necessidade de sua própria essência. Somos livres quando realizamos nosso ser como uma potência interna capaz de uma pluralidade simultânea de ideias, afetos e ações que decorrem apenas de nosso próprio ser. Somos livres quando o que somos, o que sentimos, o que fazemos e o que pensamos exprimem nossa força interna para existir e agir.
Para Hegel, o homem livre é uma figura que aparece na história e na cultura sob duas formas principais. Na primeira, a liberdade humana coincide com o surgimento da cultura, ou seja, é livre o homem que não se deixa dominar pela força da natureza e que a vence, dobrando-se à sua vontade por meio do trabalho, da linguagem e das artes. Sob essa primeira forma, podemos notar que a liberdade refere-se muito mais a uma atitude da humanidade, e não do indivíduo, a uma vitória da cultura sobre a natureza.
Em sua outra forma, o homem livre como indivíduo livre aparece na história em dois momentos sucessivos. O primeiro é o do surgimento do homem cristão ou o surgimento da interioridade cristã, que descobre a consciência como consciência de si; o segundo momento, decorrente do primeiro, é o do surgimento da individualidade racional moderna ou do indivíduo como consciência de si reflexiva. Nesse momento, o indivíduo vê sua razão e sua vontade independentes da natureza ou da necessidade natural e independentes da coação de autoridades externas na definição de seu pensamento e de sua vontade.
A liberdade como possibilidade objetiva
Além das concepções anteriores, há uma terceira, que procura unir elementos das duas outras. Afirma, como a segunda, que não somos um poder incondicional de escolha entre quaisquer possíveis, mas que nossas escolhas são condicionadas pelas circunstâncias naturais, psíquicas, culturais e históricas em que vivemos. Afirma, como a primeira, que a liberdade é um ato de decisão e escolha entre  vários possíveis. Todavia, não se trata da liberdade de querer alguma coisa, e sim (como já dizia Espinosa) de fazer alguma coisa. Somo livres para fazer alguma coisa quando temos o poder de fazê-la.
Essa terceira concepção de liberdade que encontramos em pensadores marxistas (Georg Lukács e Lucien Goldmann) e em pensadores vindos da fenomenologia e do existencialismo (como Merleau-Ponty), introduz a noção de possibilidade objetiva. O possível não é apenas alguma coisa sentida ou percebida subjetivamente por nós, mas é também, e sobretudo, alguma coisa inscrita objetivamente no seio da própria necessidade, indicando que o curso de uma situação pode ser mudado por nós, em certas direções e sob certas condições. A liberdade é a capacidade para perceber tais possibilidades e o poder para realizar aquelas ações que mudam o curso das coisas, dando-lhe outra direção ou outro sentido.
De fato, a não ser aqueles filósofos que afirmaram a liberdade como um poder absolutamente incondicional da vontade (como o fizeram, por razões diferentes, Kant e Sartre), os demais sempre levaram em conta a tensão entre nossa liberdade e as condições naturais,culturais, psíquicas, que nos determinam. As discussões sobre as paixões, os interesses, as circunstâncias histórico-sociais, as condições naturais sempre estiveram presentes na ética; por isso, uma ideia como a de possibilidade objetiva sempre esteve pressuposta ou implícita nas teorias sobre a liberdade.

Temas para a atividade dos primeiros anos do Ensino Médio.

Pesquisa sobre algum filósofo: o filósofo escolhido por mim foi Aristóteles e, o resumo de sua vida e obra está organizado da seguinte forma:
1. Quando e onde viveu? Quais foram os fatos mais marcantes da sua vida?
O filósofo Aristóteles nasceu em 384 a.C., na cidade de Estagira, e morreu em 322 a.C., seus pensamentos filosóficos e ideias sobre a humanidade tem influências significativas na educação e no pensamento ocidental contemporâneo. Aristóteles é considerado o criador do pensamento lógico. Suas obras influenciaram também na teologia medieval da cristandade.
2. Ele se inspirou em quem? E influenciou que?
Aristóteles foi viver em Atenas aos 17 anos, onde conheceu Platão, tornando-se seu discípulo. Passou o ano de 343 a.C., como preceptor do imperador Alexandre, o Grande, da Macedônia. Fundou em Atenas, no ano 335 a.C., a escola Liceu, voltada para o estudo das ciências naturais. Seus estudos filosóficos baseavam-se em experimentações para comprovar fenômenos da natureza. Influenciou durante a Idade Média o filósofo e padre da Igreja Tomás de Aquino.
3. O que ele pensou sobre Ética?
Discorda da ideia platônica que via as paixões humanas como negativas e que precisavam ser controladas pela razão. Para ele, as paixões humanas não são nem boas e nem ruins. Ruim é quando as paixões são viciosas, isto é, quando estão em excesso ou falta. Aristóteles pensa que a virtude é encontrar uma justa medida entre o excesso e a falta das paixões.
. O que ele pensou sobre a Política?
Se preocupou menos com hipóteses de uma cidade ideal e mais com um estudo dos sistemas políticos e leis existentes em sua época. Assim, diferente de Platão, que teorizou uma cidade ideal, Aristóteles pensou uma sociedade que não fosse nem totalmente democrática e nem totalmente aristocrática: a política permitiria que os conflitos entre ricos e pobres pudessem ser amenizados.
. O que ele pensou sobre Teoria do Conhecimento?
Sua metafísica, discorre sobre princípios que garantam a realidade das coisas, como os princípios de identidade, não contradição e terceiro excluído. Além dos princípios, Aristóteles aponta quatro causas e algumas categorias que possibilitam o conhecimento humano: as causa material, formal, eficiente e final e, as seguintes categorias: substância, qualidade, quantidade, relação, ação, passividade, tempo, posse, posição e onde (lugar).
. Além dessas informações, você encontrou alguma outra curiosidade a respeito da vida dele?
Apesar de existirem diversos escritos de Aristóteles, muito do que ele escreveu se perdeu. Foi a partir de alguns fragmentos de seus escritos que sua obra foi organizada. Foram juntados textos por assunto para compor o corpo de seus escritos. É certo que a forma de compreender e juntar seus escritos tem sido debatida por estudiosos.
Algumas Áreas da Filosofia 
. Política: é a investigação filosófica sobre a qual é o melhor governo, o que é justiça e como deve ser o comportamento das pessoas em suas relações de convivência.
. Ética: é uma investigação sobre os princípios que motivam, justificam ou orientam as ações humanas, refletindo sobre os fundamentos dos valores sociais e historicamente construídos.
. Estética: é o estudo dos critérios e problemas sobre processos de criação artística. Problematiza os valores estéticos e as relações entre forma e conteúdo, bem como a importância da arte para as sociedades humanas.
. Filosofia da História: é uma área de investigação da Filosofia que se preocupa com a relação dos homens com o tempo, com seus processos culturais e sociais. Além disso, preocupa-se com o significado do desenvolvimento das sociedades e da racionalidade.

terça-feira, 2 de junho de 2015

Ética ou Filosofia Moral

Os costumes são anteriores ao nosso nascimento e formam o tecido da sociedade em que vivemos, de modo que em geral acabam sendo considerados inquestionáveis e naturais, existentes por si mesmos. Mas não só isso. Para assegurar o aspecto obrigatório desses costumes, que não pode ser transgredido, muitas sociedades tendem a sacralizá-los, ou seja, as religiões os concedem ordenados pelos deuses, na origem dos tempos.
A ética como disciplina filosófica ou filosofia moral nasce quando se passa a indagar o que são, de onde vêm e o que valem os costumes. Ao nascer, ela também busca compreender o caráter de cada pessoa, isto é, as características pessoais de cada indivíduo é capaz de praticar, o que se refere, portanto, ao senso moral e à consciência moral individuais.
Podemos dizer, com base nos textos de Platão e de Aristóteles, que, no Ocidente, a ética ou filosofia moral inicia-se com Sócrates.
Sócrates, o incansável perguntador 
Contam Platão e Aristóteles que, nas praças e ruas de Atenas, Sócrates perguntava às pessoas o que eram os valores pelos quais se orientavam ao agir. Ao fim, suas perguntas revelavam sempre que os atenienses respondiam sem pensar no que diziam, repetindo o que lhes fora ensinado desde a infância.
Como cada um havia interpretado à sua maneira o que aprendera, era comum que uma pergunta recebesse respostas diferentes e contraditórias. Após certo tempo de conversa, o interlocutor ou se zangava com a impertinência de Sócrates e ia embora irritado, ou reconhecia que não sabia o que imaginava saber, dispondo-se a buscar, com o filósofo, a virtude e o bem.
Sócrates embaraçava os atenienses porque os forçava a indagar não apenas qual o sentido dos costumes estabelecidos (os valores éticos ou morais da coletividade, transmitidos de geração em geração), mas também quais as disposições de caráter (características pessoais, sentimentos, atitudes, condutas individuais) que levavam alguém a respeitar ou não os valores da cidade, e por quê.
Ao indagar o que são a virtude e o bem, Sócrates realiza, na verdade, duas interrogações. Por um lado, interroga a sociedade para saber se ao que ela costuma considerar virtuoso e bem corresponde efetivamente à virtude e ao bem; por outro, interroga os indivíduos para saber se têm efetivamente consciência do significado e da finalidade de suas ações, se seu caráter ou sua índole são virtuosos e bons realmente. A indagação ética socrática dirige-se, portanto, à sociedade e ao indivíduo.
Moral e ética: Moral deriva do latim mos, moris, enquanto ética origina-se do grego éthos. Moral e ética referem-se ao conjunto de costumes de uma sociedade, considerados como valores e obrigações para seus membros. No entanto, há na língua grega outra palavra que, ao ser transliterada para o português, se escreve da mesma maneira que a palavra que significa 'costume' (éthos). Em grego, existem duas vogais para pronunciar e grafar a vogal e: uma breve (epsílon) e uma longa (eta). Éthos, escrita com a vogal longa, significa 'costume'; poré,, se escrita com a vogal breve, significa 'caráter', 'índole natural', 'conjunto das disposições físicas e psíquicas de uma pessoa'.
Aristóteles e a práxis
Se devemos a Sócrates o início da filosofia moral, devemos a Aristóteles a distinção entre saber teorético ou contemplativo e saber prático. O saber teorético é o conhecimento de seres e fatos que existem e agem independentemente de nós e sem nossa interferência, isto é, de seres e fatos  naturais e divinos. O saber prático é o conhecimento daquilo que existe como consequência de nossa ação e, portanto, depende de nós. A ética e a política são saberes práticos. O saber prático pode ser de dois tipos: práxis ou técnica.
Na práxis, o agente, a ação e a finalidade do agir são inseparáveis, pois o agente, o que ele faz e a finalidade de sua ação são o mesmo. Assim, por exemplo, dizer a verdade é uma virtude do agente, inseparável de sua fala verdadeira e de sua finalidade, que é proferir uma verdade; não podemos distinguir o falante, a fala e o conteúdo falado.
Para Aristóteles, na práxis ética somos aquilo que fazemos e o que fazemos é a finalidade boa ou virtuosa. Ao contrário, na técnica o agente, a ação e a finalidade da ação são diferentes e estão separados, sendo independentes uns dos outros.
Um carpinteiro, por exemplo, ao fazer uma mesa, realiza uma ação técnica, mas ele próprio não é essa ação nem é a mesa produzida por ela. A técnica tem como finalidade a fabricação de alguma coisa diferente do agente (a mesa não é o carpinteiro, enquanto uma fala verdadeira é o ser próprio do falante que a diz) e da ação fabricadora (a ação técnica de fabricar a mesa implica o trabalho sobre a madeira com instrumentos apropriados, mas isso nada tem a ver com a finalidade da mesa, uma vez que o fim é determinado pelo uso e pelo usuário). Assim, a ética e a técnica são distinguidas como práticas que diferem pela realação do agente com a ação e com a finalidade da ação.
Deliberação e decisão
Também devemos a Aristóteles a definição do campo das ações éticas. Estas não são definidas pela virtude, pelo bem e pela obrigação, mas também pertencem àquela esfera da realidade na qual cabem a deliberação e a decisão e a escolha.
Em outras palavras, quando o curso da realidade segue leis necessárias e universais, não há como nem por que deliberar e escolher, pois as coisas acontecerão necessariamente tais como as leis que as regem determinam que devam acontecer. Não deliberamos sobre as estações do ano, o movimento dos astros, a forma dos minerais ou dos vegetais. Não deliberamos nem decidimos sobre aquilo que é regido pela natureza, isto é, pela necessidade.
Mas deliberamos e decidimos sobre tudo aquilo que, para ser e acontecer, depende de nossa vontade e de nossa ação. Não deliberamos e não decidimos sobre o necessário, pois o necessário é o que é e será sempre tal como é, independentemente de nós. Deliberamos e decidimos sobre o possível, sobre aquilo que pode ser ou deixar de ser, porque para ser e acontecer depende de nós, de nossa vontade e de nossa ação.
Com isso, Aristóteles acrescenta à consciência moral, trazida por Sócrates, a vontade guiada pela razão como o outro elemento fundamental da vida ética.
Devemos a Aristóteles uma distinção central em todas as formulações ocidentais da ética: a diferença entre o que é por natureza (ou conforme a physis) e o que é por vontade (ou conforme à liberdade). O necessário é por natureza; o possível, por vontade.
A importância dada por Aristóteles à vontade racional, à deliberação e à escolha o levou a considerar uma virtude como condição de todas as outras e presente em todas elas: a prudência ou sabedoria prática. Prudente é aquele que, em todas as situações, julga e avalia qual atitude e qual ação melhor realizarão a finalidade ética, ou seja, garantirão que o agente seja, garantirão que o agente seja virtuoso e realize o que é bom para si e para os outros.
O cristianismo: interioridade e dever
Diferentemente de outras religiões da Antiguidade, o cristianismo nasce como religião de indivíduos que não se definem por seu pertencimento a uma nação ou a um Estado, mas por sua fé em um único Deus. Assim, o cristianismo introduz duas diferenças primordiais na antiga concepção ética:
1. a ideia de que a virtude se define por nossa relação com Deus e não com a cidade (a pólis) nem com os outros. Nossa relação com os outros depende da qualidade da nossa relação com Deus, único  mediador entre cada indivíduo e os demais. Por isso, as principais virtudes cristãs, condições de todas as outras, são a fé (a relação de nossa alma com Deus) e a caridade (o amor aos outros e a responsabilidade pela salvação dos outros, conforme exige a fé). As virtudes são privadas e não públicas, são relações do indivíduo com Deus e com os outros, e se baseiam na intimidade e na interioridade de cada um;
2. a afirmação de que somos dotados de livre-arbítrio e que, em decorrência do "pecado original", o impulso espontâneo de nossa liberdade dirige-se para o mal, para o pecado. Somos seres pecadores, divididos entre o bem e o mal e constituídos de natureza fraca. Por isso, o cristianismo pressupõe nossa incapacidade de realizarmos o bem e as virtudes apenas por nossa vontade.
Em suma, enquanto para os filósofos antigos a vontade consciente era uma faculdade racional capaz de dominar e controlar nossos apetites e desejos, de modo a nos tornar morais, o cristianismo considera que a própria vontade está pervertida pelo pecado, sendo preciso auxílio divino para nos tornarmos morais. Esse auxílio é trazido pela lei divina revelada ou pelos mandamentos diretamente ordenados por Deus aos homens, que devem ser obedecidos obrigatoriamente, sem exceção.
Duas visões modernas do dever
Um dos filósofos que procurou resolver essa dificuldade foi Jean-Jaques Rousseau, no século XVIII. Para ele, a consciência moral e o sentimento do dever são inatos, são a "voz da natureza" e o "dedo de Deus" em nosso coração. Apesar do pecado do primeiro homem, conservamos em nosso coração vestígios da bondade original e por isso nascemos puros e bons, dotados de generosidade e de benevolência.
Se o dever parece ser uma imposição e uma obrigação externa, imposta por Deus aos humanos, é porque nossa bondade natural foi pervertida pela sociedade quando esta criou a propriedade privada e os interesses privados. Ao dar nascimento à razão utilitária ou à razão dos interesses privados. Ao dar nascimento à razão utilitária ou à razão dos interesses, a sociedade tornou-nos egoístas, mentirosos e destrutivos.
Assim, longe de ser uma imposição externa, o dever simplesmente é o que nos força a recordar nossa boa natureza originária, que ficaria para sempre escondida sob os interesses da razão utilitária se o dever nos fizesse recuperá-la por meio da bondade originária de nosso coração.
Outra resposta ao mesmo problema, também no final do século XVIII, foi dada por Kant. Opondo-se à "moral do coração" de Rousseau, Kant volta a afirmar o papell da razão na ética. Não existe bondade natural. Por natureza, diz Kant, somos egoístas, ambiciosos, destrutivos, agressivos, cruéis, ávidos de prazeres que nunca nos saciam e pelos quais matamos, mentimos, roubamos. É justamente por isso que precisamos do dever, trazido pela razão pura prática, inata em nós, para nos tornar seres morais.
As respostas de Rousseau e de Kant, embora diferentes, procuram resolver a mesma dificuldade: explicar por que o dever e a liberdade da consciência moral são inseparáveis e compatíveis. A solução de ambos consiste em considerar o dever como algo que nasce em nosso interior, proposto pelo coração (Rousseau) ou pela razão (Kant), desfazendo, assim, a impressão de que ele nos seria impostor por uma vontade estranha à nossa.
A Ética de Espinosa
Se, agora, tornarmos, como referência um filósofo do século XVII, Baruch Espinosa, cuja obra principal intitula-se Ética, veremos o quadro das virtudes e dos vícios alterar-se profundamente.
Para Espinosa, somos seres naturalmente afetivos, isto é, nosso corpo é ininterruptamente afetado por outros (que podem conserva-lo e regenerá-lo ou enfraquecê-los ou destruí-los). Essas afecções corporais se exprimem em nossa alma na forma de afetos ou sentimentos. O afeto ou sentimento é, portanto, constitutivo de nosso corpo e de nossa alma. 
Nossos afetos são naturalmente paixões, pois somos naturalmente passionais porque sofremos a ação de causas exteriores a nós. Em outras palavras, ser passional é ser passivo, deixando-se conduzir por forças exteriores ao nosso corpo e de nossa alma.
Ora, por natureza, vivemos rodeados por outros seres, mais numerosos e mais fortes do que nós, que agem sobre nós. Por isso, diz Espinosa, as paixões não são boas nem más, simplesmente são naturais. Não são vícios da natureza humana e sim a maneira como existimos recebendo e sofrendo a ação de causas externas. Uma paixão indica a força ou a fraqueza de nosso ser para existir e pensar.
Três são as paixões originais ou primitivas: alegria, tristeza e desejo. As demais derivam destas. Uma paixão alegre é aquela que aumenta nossa capacidade de ser e agir. Dela nascem as paixões de amor, devoção, esperança, segurança, contentamento, misericórdia, glória. Uma paixão triste é a que diminui nossa capacidade para ser e agir. Dela surgem as paixões de ódio, inveja, orgulho, arrependimento, modéstia, humildade, medo, desespero. Desejar é ser determinado a querer e fazer alguma coisa conforme sejamos movidos por paixões de alegria ou de tristeza, aumentando ou diminuindo nossa capacidade de ser e de agir. Do desejo provém paixões como a gratidão, a glória, a benevolência, a cólera, a crueldade, a vingança, a ambição, o temor, a ousadia, a luxúria, a avareza.
Da servidão passional à liberdade afetiva
Que é o vício? Não é ter paixões. É, explica Espinosa, a fraqueza para existir, agir e pensar. É deixar-se levar apenas por afetos passivos ou paixões, submetendo-se a eles, pois com isso deixamos governar por causas externas.
Como sucumbiram ao poderio de forças externas? Deixando-nos dominar pelas paixões tristes e pelas desejantes nascidas da tristeza. Por isso, em vez de vício, Espinosa fala em servidão humana.
De fato, somos servos quando nossas paixões determinam nossa vida e, portanto, quando não somos livres, mas vivemos sob o poder externo das coisas, que nos arrastam para onde querem. Ora, quanto mais fracos somos, e tanto mais fracos nos tornamos quanto  mais paixões tristes e desejos tristes nos dominem.
Que é a virtude? Não é cumprir deveres e obrigações, mas ter força interior para passar da passividade à atividade, ou seja, de afetos passivos (as paixões) a afetos ativos (as ações éticas). A virtude é ação. Ser virtuoso ou o ser livre é passar da paixão à ação, tornar-se causa ativa interna de nossa existência, de nossos atos e pensamentos.
Essa passagem é uma mudança na qualidade de nossos afetos e se dá no próprio interior das paixões não contra elas, e sim graças a elas. De fato, as paixões e os desejos tristes nos enfraquecem e nos tornam cada vez mais passivos, enquanto as paixões e os desejos alegres nos fortalecem. A vida ética se inicia quando procuramos aumentar paixões e desejos alegres e afastar paixões e desejos tristes, pois, à medida que as paixões de alegria e de desejo alegre nos fortalecem, vamos adquirindo poder sobre nós mesmos e diminuindo o poderio das forças externas.
Quando nossa razão se torna capaz de ser vivida por nós afetivamente, isto é, quando experimentamos que conhecer é mais forte do que ignorar e que o conhecimento é a força própria de nossa alma, nossa atividade racional se torna afeto ativo, a alegria ativa.
Ora, a atividade racional não depende de causas externas, mas exclusivamente da força interna de nossa razão. Assim, uma razão forte é alegre e uma razão alegre é forte: com ela se inicia a passagem afetiva e cognitiva que nos leva da paixão à ação, da servidão à liberdade, transformando as paixões alegres e as desejantes nascidas da alegria em atividades de que somos a causa. A virtude é a força para ser e agir com liberdade.
Bom e mau
O bom, explica Espinosa, é aquilo que é útil para o crescimento de nosso ser; o mau, o que nos impede de alcançar algo bom para nossa existência. Seja nas paixões, seja nas ações, todos nós sempre buscamos o bom-útil e nos esforçamos para afastar o que julgamos mau-nocivo para nossa existência.
Ora, explica Espinosa, vivemos na companhia dos outros seres humanos e somos todos movidos por paixões, as quais podem tornar-nos contrários uns aos outros e inimigos uns dos outros. Dessa maneira, cada um pode tornar-se um obstáculo para que outros consigam o bom-útil que desejam. Por esse motivo, explica Espinosa, as paixões e os desejos alegres podem criar laços de concordância entre os homens, enquanto as paixões e os desejos tristes sempre os tornam inimigos.
Todavia, uma paixão é sempre instável, pois nela nosso sentimento depende de causas externas e de circunstâncias que não dependem de nós. Por esse motivo, paixões e desejos alegres podem mudar e tornar-se tristes, enfraquecer-nos e nos tornar inimigos uns dos outros.
Para resolver essa dificuldade, Espinosa propõe duas soluções: de um lado, um sociedade política cujas instituições favoreçam  a diminuição das formas de violência e fortaleçam os laços de amizade, gratidão e benevolência entre as pessoas, estabilizando suas paixões e seus desejos alegres; essa sociedade é a sociedade democrática. De outro, a vida ética como ação virtuosa.
Que significa isto?
A virtude, diz Espinosa, não é senão a realização de nossa capacidade cognitiva ou racional, e por isso nela nunca nos enganamos quanto ao que é bom-útil para nosso ser. Assim sendo, os que agem por virtude não são movidos pelo ódio, pelo medo, pela inveja, pelo orgulho e por outra paixões criadoras de inimizade e discórdia. Consequentemente, a virtude favorece e conserva a concórdia afetiva e cognitiva entre os homens.
Assim como a política democrática estabiliza paixões e desejos alegres, promovendo a concórdia social, também avida ética promove a concórdia e a amizade entre os indivíduos. Na política democrática, a concordância baseia-se no fato de que o que é bom-útil para a sociedade também o é para os seus membros; na ética, a base é dada pelo fato de que o que é bom-útil para um indivíduo, por ser algo racional e desejo alegre ou forte, não é obstáculo para o bem e a utilidade dos outros, mas favorece a virtude dos demais.
Uma concepção contemporânea da virtude
Observamos que a ética espinosana evita oferecer um quadro de virtudes e vícios, distanciando-se de Aristóteles e da moral cristã, para buscar na ideia moderna de indivíduo livre o núcleo da ação moral. Na ética, Espinosa jamais fala em pecado e em dever; fala em fraqueza e em força para ser, pensar e agir.
As virtudes aristotélicas inserem-se numa sociedade que valorizava as relações sociopolíticas entre os seres humanos. As virtudes cristãs, por sua vez, exprimem ideias, costumes e valores de uma sociedade voltada para a relação dos seres humanos com Deus e com a lei divina. A virtude espinosana torna a relação do indivíduo com a natureza e a sociedade, centrando-se nas ideias de integridade individual e de força interna para relacionar-se livremente com ambas.
Um pensador contemporâneo, Alasdair MacIntyre, numa obra intitulada Depois da Virtude, procura redefinir a ideia de virtude na sociedade contemporânea. A pluralidade e diversificação de instituições sociais na atualidade impõem para um mesmo indivíduo uma grande variedade de condutas e comportamentos diferentes, há normas e valores na família, na escola, nos diferentes tipos de profissões e de trabalhos, nas diferentes formas políticas, etc.
Indaga MacIntyre é possível falar em virtude no singular, a virtude, ou será preciso considerar que em cada esfera da existência há um tipo determinado de virtude e empregar o plural, as virtudes? Seja no singular, seja no plural, falar em virtude implica uma ideia geral de virtude por isso, cabe indagar: como encontrar uma ideia de virtude que possa dar conta da multiplicidade de condutas e de modo de vida?
MacIntyre, inspirando-se em Aristóteles, concebe a virtude como práxis, portanto, como aquela ação ou conduta na qual o agente, o ato e a finalidade são inseparáveis e mesmo idênticos. Por isso, a concebe como uma qualidade humana adquirida que, em qualquer esfera de vida e atividade, nos torna capazes de alcançar um bem interno à própria prática ou à própria conduta.
MacInyre se preocupa com o fato de que sociedades como a nossa são internamente muito diferenciadas em suas instituições sociais, cada uma delas com normas e regras de condutas próprias. Dessa maneira, o que pode ser ético na família não o será na profissão e o que é ético em ambas poderá não sê-lo na política, etc.
Nesse contexto, a unidade ética é alcançada quando somos capazes de avaliar os múltiplos bens ou valores de cada esfera de nossa existência à luz da unidade de nossa vida, isto é, de nosso desejo de uma vida coerente, inteira e íntegra. É esse desejo de coerência de vida e de inteireza de caráter que deve orientar cada uma de nossas condutas e cada um de nossos comportamentos.

segunda-feira, 1 de junho de 2015

Filosofia na História

Os principais períodos da Filosofia:
Filosofia antiga (do século VI a.C. ao século VI d.C.)
Compreende os quatro grandes períodos da filosofia greco-romana, indo do período pré-socrático ao helenístico.
Filosofia patrística (do século I ao século VII)
Inicia-se com as Epístolas de Paulo e o Evangelho de João e termina no século VIII, quando teve início a filosofia medieval.
A filosofia desse período é conhecida com o nome de patrística, pois foi obra não só de dois apóstolos (Paulo e João), mas também dos chamados padres da Igreja católica, isto é, dos primeiros dirigentes espirituais e políticos do cristianismo, após a morte dos apóstolos.
A patrística resultou do esforço feito pelos dois apóstolos intelectuais (Paulo e João) e pelos primeiros padres para conciliar a nova religião, o cristianismo, com o pensamento filosófico dos gregos e romanos, pois somente com tal conciliação seria possível convencer os pagãos da nova verdade e convertê-los a ela. A filosofia patrística liga-se, portanto, à evangelização e à defesa da religião cristã contra os ataques teóricos e morais que recebia dos antigos. Seus nomes mais importantes foram Justino, Tertuliano, Orígenes, Clemente, Eusébio, Santo Ambrósio, São Gregório Nazianzo, São João Crisóstomo, Santo Agostinho e Boécio.
A patrística introduziu ideias desconhecidas para os filósofos greco-romanos; a ideia de criação do mundo a partir do nada, de pecado original do homem, de Deus como trindade una, de encarnação e morte de Deus, de juízo final ou de fim dos tempos e ressurreição dos mortos, etc. Precisou também explicar como o mal pode existir no mundo, uma vez que tudo foi criado por Deus, que é pura perfeição e bondade.
Introduziu, sobretudo com Santo Agostinho e Boécio, a ideia de "homem interior", isto é, da consciência moral e do livre-arbítrio da vontade, pelo qual o homem, por ser dotado de liberdade para escolher entre o bem e o mal, é o responsável pela existência do mal no mundo.
Para impor as ideias cristãs, os padres da Igreja católica as transformaram em verdades reveladas por Deus (por meio da Bíblia e dos santos) que, por serem decretos divinos, seriam dogmas, isto é, verdades irrefutáveis e inquestionáveis. Com isso, criou-se uma distinção entre verdades reveladas ou da fé e verdades da razão ou humanas, ou seja, entre verdades sobrenaturais e verdades naturais, as primeiras introduzindo a noção de conhecimento recebido por uma graça divina, superior ao simples conhecimento racional. Dessa forma, o grande tema da filosofia patrística é o da possibilidade ou impossibilidade de conciliar a razão com a fé.
A esse respeito, havia três posições principais:
1. os que julgavam fé e razão irreconciliáveis e a fé superior à razão (diziam eles: "Creio porque é absurdo");
2. os que julgavam fé e razão conciliáveis, mas subordinavam a razão à fé (diziam: "Creio para compreender");
3. os que julgavam razão e fé irreconciliáveis, mas afirmavam que cada uma delas tem seu campo próprio de conhecimento e não devem se misturar (a razão se refere a tudo o que concerne à vida temporal dos homens no mundo; a fé, a tudo o que se refere à salvação da alma e à vida eterna futura).
Filosofia Medieval (do século VIII ao século XIV)
Abrange pensadores europeus, muçulmanos e judeus. É o período em que a Igreja romana dominava a Europa, ungia e coroava reis, organizava Cruzadas à chamada Terra Santa e criava, à volta das catedrais, as primeiras universidades ou escolas. A partir do século XII, por ter sido ensinada nas escolas, a filosofia medieval também é conhecida com o nome de escolástica.
A filosofia medieval teve como influências principais Platão e Aristóteles, embora o Platão conhecido pelos medievais fosse o neoplatônico (isto é, interpretado pelo filósofo Plotino, do século III d.C.), e o Aristóteles por eles conhecido fosse aquele conservado e traduzido pelos pensadores muçulmanos, particularmente Avicena e Averróis.
Conservando e discutindo os mesmos problemas que a patrística, a filosofia medieval acrescentou outros. Durante esse período surge principalmente a filosofia cristã, que é, na verdade, uma teologia fundada na nova fé do mirante no Ocidente. Alguns de seus grandes temas são: a diferença e separação entre infinito (Deus) e finito (homem, mundo); a diferença entre a razão e fé (a primeira deve subordinar-se à segunda); a diferença e separação entre corpo (matéria) e alma (espírito); o Universo como uma hierarquia de seres, pelo qual os superiores (Deus, serafins, querubins, arcanjos, anjos, alma) dominam e governam os inferiores (corpo, animais, vegetais, minerais); a subordinação do poder temporal dos reis e nobres ao poder espiritual de papas e bispos.
Outra característica marcante da escolástica foi o método por ela inventado para expor as ideias filosóficas, conhecido como disputa: apresentava-se uma tese e esta devia ser ou refutada ou defendida com argumentos tirados da Bíblia, de Aristóteles, de Platão ou de padres da Igreja, particularmente Pedro Lombardo.
Assim, uma ideia era considerada verdadeira ou falsa dependendo da força e da qualidade dos argumentos encontrados nos vários autores. Por causa desse método de disputa, costuma-se dizer que, na Idade Média, o pensamento estava subordinado ao princípio da autoridade, isto é, uma ideia é considerada verdadeira se tiver respaldo nos argumentos de uma autoridade reconhecida, Bíblia, Platão, Aristóteles, um papa, um santo.
Filosofia da Renascença (século XIV e XV) 
É marcada pela descoberta, na Europa ocidental, das obras de Platão e de outras obras de Aristóteles, desconhecidas na Idade Média. Essas obras, lidas em grego, recebem novas traduções, mais acuradas e fiéis. Nessa época, muitos também se dedicam a recuperar obras de autores gregos e romanos e imitá-los.
São três as grandes linhas de pensamento que predominavam na Renascença:
1. Aquela proveniente da leitura de três diálogos de Platão (Banquete, Fédon e Fedro), das obras dos filósofos neoplatônicos e da descoberta do conjunto dos livros de hermetismo ou de magia natural, que se supunha terem vindo do Egito, escritos séculos antes de Moisés e de Platão, ditados por deuses a seus filhos humanos.
Essa linha de pensamento, surgida na cidade de Florença (na atual Itália), concebia a natureza como um grande ser vivo, dotado de uma alma universal ( a Alma do Mundo) e feito de laços e vínculos secretos de simpatia e antipatia entre todas as coisas. O homem, como parte da natureza, poderia agir sobre o mundo por meio de conhecimentos e práticas que operam com essas ligações secretas, isto é, por meio da magia natural, da alquimia e da astrologia.
2. Aquela originária dos pensadores florentinos que valorizavam a vida ativa (a política) e defendiam a liberdade das cidades italianas contra o poderio dos papas e dos imperadores. Na defesa da liberdade política, esses pensadores recuperaram a ideia de república presente nas obras dos grandes autores políticos da Roma antiga, como Cícero, Tito Lívio e Tácito, bem como nos escritos de historiadores e juristas clássicos. Sua proposta era a da "imitação dos antigos", ou o renascimento da república livre.
3. Aquela que propunha o ideal do homem como artífice de seu próprio destino, tanto por meio dos conhecimentos (astrologia, magia, alquimia) como por meio da política (o ideal republicano), das técnicas (medicina, arquitetura, engenharia, navegação) e das artes (pintura, escultura, poesia, teatro).
Essas três linhas de pensamento explicam por que se costuma falar no humanismo como traço predominante da Renascença, uma vez que nelas o homem é colocado como centro do Universo, defendido em sua liberdade e em seu poder criador e transformador.
A intensa atividade teórica e prática dessa época foi alimentada com as grandes viagens marítimas, que levavam os europeus a conhecer novos mares, novos céus, novas terras e novas gentes, permitindo-lhes ter uma visão crítica de sua própria sociedade. Essa efervescência cultural e política levou a críticas profundas à Igreja romana, que culminaram na Reforma Protestante.
Filosofia Moderna (do século XVII a meados do século XVIII) 
Nesse período, conhecido como o Grande Racionalismo Clássico, foi preciso enfrentar um ambiente de pessimismo teórico, reinante desde o fim desde o século XVI. Dominava o citicismo, a atitude filosófica que duvida da capacidade da razão humana para conhecer a realidade exterior e o homem.
As guerras de religião, os encontros dos europeus com povos que desconheciam, as disputas filosóficas e teológicas criaram um ambiente em que o sábio já não podia admitir que a razão humana é capaz de conhecimento verdadeiro e que a verdade é universal e necessária. Ao contrário, diante da multiplicidade de opiniões em luta, o sábio tornou-se cético.
Para restaurar o ideal filosófico da possibilidade do conhecimento racional verdadeiro e universal, a filosofia moderna propõe três mudanças teóricas principais:
1. O surgimento do sujeito do conhecimento: a filosofia, em lugar de começar por conhecer a natureza (como na filosofia antiga) ou Deus (como na patrística e na escolástica), começa indagando qual é a capacidade da razão humana para conhecer e demonstrar a verdade dos conhecimentos. Em outras palavras, em vez de começar pelas coisas a serem conhecidas, sobre as quais só cabem dúvidas e desconfianças, a filosofia começa pela reflexão. Assim, aquele que conhece (o sujeito do conhecimento) volta-se para si mesmo para saber se é capaz de conhecimento verdadeiro e, se for, sob quais condições ele é capa disso. Somente depois de conhecer-se a si mesmo como capaz de conhecimento verdadeiro é que o sujeito se volta para as coisas a conhecer ou para os objetos do conhecimento.
O ponto de partida é, portanto, o sujeito do conhecimento como consciência de si reflexiva, isto é, como consciência que conhece sua capacidade de conhecer. O sujeito do conhecimento é o intelecto ou a inteligência que, com a vontade, existe no interior de uma substância, a corpórea, que constitui a natureza do nosso corpo e dos corpos exteriores.
Por isso, para vencer o ceticismo, a filosofia precisa responder às perguntas: "Como o intelecto pode conhecer o que é diferente dele?"; "Como o espírito pode conhecer a matéria?"; "Como o sujeito espiritual pode conhecer os objetos corporais, o seu próprio corpo e os demais corpos da natureza?".
2. A resposta a essas perguntas constitui a segunda grande mudança teórica, que diz respeito ao objeto do conhecimento. Para os modernos, as coisas exteriores (a natureza, as instituições sociais e políticas) são conhecidas quando o sujeito do conhecimento as representa intelectualmente, ou seja, quando as apreende como ideias que dependem apenas das operações cognitivas realizadas pelo próprio sujeito.
Isso significa, por um lado, que tudo o que pode ser conhecido deve poder ser representado por um conceito ou por uma ideia clara e distinta, demonstrável e necessária, formulada pelo intelecto, e, por outro lado, que a natureza, a sociedade e a política podem ser inteiramente conhecidas pelo sujeito do conhecimento, porque são racionais em si mesmas e propensas a serem representadas pelas ideias do sujeito do conhecimento.
3. Essa concepção da realidade como racional e plenamente captável pelas ideias e conceitos preparou a terceira grande mudança teórica moderna. A natureza, a partir de Galileu, é concebida como um sistema ordenado de causas e efeitos cuja estrutura profunda e invisível é matemática. O "livro do mundo", diz Galileu, "está escrito em caracteres matemáticos, e para lê-lo é preciso conhecer matemática".
Essa ideia deu origem à ciência clássica, na qual prevalece o ponto de vista da mecânica, isto é, o de que nas relações de causa e efeito entre as coisas a causa é sempre o movimento, e este segue leis universais necessárias que podem ser explicadas e representadas matematicamente. Todos os fatos da realidade podem ser conhecidos pelas relações necessárias de causa e efeito que os produzem, os conservam ou os destroem.
A realidade é um sistema de causalidades racionais rigorosas que podem ser conhecidas e transformadas pelo homem. Nascem, assim, a ideia de experimentação científica (são criados laboratórios) e o ideal tecnológico, ou seja, a expectativa de que o homem poderá dominar tecnicamente a natureza e a sociedade, graças à invenção de máquinas.
Existe também a convicção de que a razão humana é capaz de conhecer a origem, as causas e os efeitos das paixões e das emoções e, pela vontade orientada pela razão, é capaz de governá-las e dominá-las de sorte que a vida ética pode ser plenamente racional.
A mesma convicção orienta o racionalismo político, isto é, a ideia de que a razão é capaz de definir para cada sociedade qual o melhor regime político e como mantê-lo racionalmente.
Os principais pensadores desse período foram: Francis Bacon, Descartes, Galileu, Pascal, Hobbes, Leibniz, Espinosa, Malebranche, Locke, Berkeley, Newton, Gassendi.
Filosofia da ilustração ou Iluminismo (meados do século XVIII ao início do século XIX)
Esse período também crê nos poderes da razão, chamada de As Luzes (por isso o nome iluminismo). O Iluminismo afirma que:
. pela razão, o homem pode conquistar a liberdade e a felicidade social e política (as ideias do iluminismo foram decisivas para a Revolução Francesa de 1789);
.  a razão é capaz de aperfeiçoamento e progresso, e o homem é um ser perfectível. A perfectibilidade consiste em libertar-se dos preconceitos religiosos, sociais e morais, libertar-se da superstição e do medo, graças ao avanço das ciências, das artes e da moral;
. o aperfeiçoamento da razão se realiza pelo progresso das civilizações, que vão das mais atrasadas (também chamadas de "primitivas" ou "selvagens") às mais adiantadas e perfeitas (na visão da maioria de seus filósofos, as da Europa ocidental);
. há diferença entre natureza e civilização: a natureza é o reino das leis naturais universais e
imutáveis, enquanto a civilização é o reino da liberdade e da finalidade proposta pela vontade livre dos próprios homens em seu aperfeiçoamento moral, técnico e político
A natureza é o reino da necessidade, isto é, das coisas e acontecimentos que não podem ser diferentes do que são; a civilização é o reino da liberdade, isto é, onde os fatos e acontecimentos podem ser diferentes do que são porque a vontade humana pode escolher entre alternativas.
Nesse período há grande interesse pelas ciências que operam com a ideia de transformação progressiva. Por isso, a biologia terá um lugar central no pensamento ilustrado, pertencendo ao campo da filosofia da vida. Há igualmente grande interesse e preocupação com as artes, na medida em que elas seriam a expressão por excelência do grau de progresso de uma civilização.
Data também desse período o interesse pelas bases econômicas da vida social e política. Surge uma reflexão sobre a origem e a forma das riquezas das nações, com uma controvérsia sobre qual é a fonte de maior importância: a agricultura (corrente fisiocrata) ou o comércio (corrente mercantilista).
Os principais pensadores do período foram: Hume, Voltaire, D'Alembert, Diderot, Rousseau, Kant, Fichte e Shelling.
Filosofia contemporânea
Abrange o pensamento que vai de meados do século XIX aos nossos dias. Este período, por ser o mais próximo de nós, parece o mais complexo de definir: as diferenças entre as várias posições filosóficas nos parecem muito grandes, pois as estamos vendo surgir diante de nós.
Os principais filósofos da contemporaneidade são: Michel Foucault, Martin Heidegger, Ludwig Wittgenstein, Jürgen Habermas.