terça-feira, 9 de junho de 2015

Três concepções de Ciência

As várias concepções de ciência não são sucessivas, isto é, podem coexistir numa mesma época, ainda que uma delas prevaleça sobre as outras como a mais aceita ou praticada. Assim, por exemplo, Galileu, criador da filosofia moderna, é um racionalista contemporâneo do empirista Boyle, um dos criadores da química moderna.
A concepção racionalista, que se estende de Platão até o final do século XVII, afirma que a ciência é um conhecimento racional dedutivo e demonstrativo como a matemática. Portanto, seria capaz de provar a verdade necessária e universal de seus enunciados e resultados, sem deixar nenhuma dúvida.
Uma ciência é a unidade sistemática de axiomas, postulados e definições e demonstrações. Enquanto os três primeiros determinam a natureza e as propriedades do objeto investigado, as demonstrações provam as relações de causalidade que regem esse objeto.
O objeto científico é uma representação intelectual universal, necessária e verdadeira das coisas representadas, e corresponde à própria realidade, porque esta é racional e inteligível em si mesma. As experiências científicas são realizadas apenas para verificar e confirmar as demonstrações teóricas, e não para produzir o conhecimento do objeto, pois este é conhecido exclusivamente pelo pensamento. O objeto científico é matemático, porque a realidade tem uma estrutura matemática, ou, como disse Galileu, "o grande livro da natureza está escrito em caracteres matemáticos",
A concepção empirista vai da medicina grega e do pensamento de Aristóteles até o final do século XIX. Ela afirma que a ciência é uma interpretação dos fatos baseada em observações e experimentos que permitem estabelecer induções e que, ao término, oferecem a definição do objeto, suas propriedades e suas leis de funcionamento. A teoria científica resulta das observações e dos experimentos, de modo que a experiência não tem simplesmente a função de verificar e confirmar conceitos, mas a de produzi-los. Eis por que, nesta concepção, sempre houve grande cuidado para estabelecer métodos experimentais rigorosos, pois deles dependia a formulação da teoria e a definição da objetividade investigada.
Essas duas concepções de cientificidade tinham o mesmo pressuposto, embora o realizassem de maneiras diferentes. Ambas consideravam que  a teoria científica era uma explicação e uma representação verdadeira da própria realidade, tal como esta é em si mesma. A ciência era uma espécie de raio X da realidade.
A concepção racionalista era hipotético-dedutiva, isto é, definia o objeto e suas leis e disso deduzia propriedades, efeitos posteriores, previsões. A concepção empirista era hipotético-indutiva, isto é, apresentava suposições sobre o objeto, realizava observações e experimentos, e chegava a definição dos fatos, às suas leis, às suas propriedades, aos seus efeitos posteriores e previsões.
A concepção construtivista, iniciada no século XX, considera a ciência uma construção de modelos explicativos para a realidade, e não uma representação desta. O cientista combina dois procedimentos, um vindo do racionalismo, outro vindo do empirismo, e a eles acrescenta um terceiro, vindo da ideia de conhecimento aproximativo e corrigível.
Como o racionalista, o cientista construtivista exige que o método lhe permita estabelecer axiomas, postulados, definições e deduções sobre o objeto científico. Como o empirista, o construtivista exige que a experimentação guie e modifique axiomas, postulados, definições e demonstrações. No entanto, porque considera o objeto uma construção lógico-intelectual e uma construção experimental feita em laboratório, o cientista não espera que seu trabalho apresente a realidade em si mesma. Em vez disso, espera que seu trabalho ofereça estruturas e modelos de funcionamento da realidade, explicando os fenômenos observados. Não espera, portanto, apresentar uma verdade absoluta, e sim uma verdade aproximada que pode ser corrigida, modificada, abandonada por outra mais adequada aos fenômenos. São três as exigências de seu ideal de cientificidade:
1. que haja coerência (isto é, que não haja contradições) entre os princípios que orientam a teoria;
2. que os modelos dos objetos (ou estruturas dos fenômenos) sejam construídos com base na observação e na experimentação;
3. que os resultados obtidos possam alterar não só os modelos construídos, mas também os próprios princípios da teoria, corrigindo-a.
Diferenças entre a ciência antiga e a clássica ou moderna
Quando apresentamos os ideais de cientificidade, dissemos que tanto o ideal racionalista como o empirista se iniciaram com os gregos. Isso, porém, não significa que a concepção antiga e a clássica ou moderna (século XVII) de ciência sejam idênticas.
Entre as várias diferenças, devemos mencionar uma, talvez a mais profunda: a ciência antiga era uma ciência teorética, ou seja, apenas contemplava os seres naturais, sem jamais imaginar intervir neles ou sobre eles por meios técnicos; já a ciência clássica visa não só ao conhecimento teórico, mas sobretudo à aplicação prática ou técnica. Francis Bacon dizia que "saber é poder", e Descartes escreveu que a "ciência deve tornar-nos senhores da natureza".
A ciência clássica ou moderna nasce vinculada à ideia de intervir na natureza, de conhecê-la não apenas para contemplar a verdade, mas para apropriar-se da natureza, para controlá-la e dominá-la. Numa sociedade em que o capitalismo está surgindo e, para acumular capital, deve ampliar a capacidade do trabalho humano para modificar e explorar a natureza, a nova ciência será inseparável da técnica.
Na verdade, é mais correto falar em "tecnologia" do que em "técnica". A técnica é um conhecimento empírico que, graças à observação, elabora um conjunto de receitas e práticas para agir sobre as coisas. A tecnologia, porém, é um saber teórico que se aplica na prática. 
Por exemplo, um relógio de sol é um objeto técnico que serve para marcar horas seguindo o movimento solar no céu. Um cronômetro, porém, é um objeto tecnológico: por um lado, sua construção pressupõe conhecimentos teóricos sobre as leis do movimento (as leis do pêndulo) e, por outro, seu uso altera a percepção empírica e comum dos objetos, pois serve para medir aquilo que nossa percepção não consegue alcançar. Uma lente de aumento é um objeto técnico, mas o telescópio e o microscópio são objetos tecnológicos, pois sua construção pressupõe o conhecimento das leis científicas definidas pela óptica. Em outras palavras, um objeto é tecnológico quando sua construção pressupõe um saber científico e quando seu uso interfere nos resultados das pesquisas científicas (por exemplo, o uso do telescópio modifica a astronomia e o do microscópio, a biologia). A ciência moderna tornou-se inseparável da tecnologia.
As mudanças científicas
Vimos até aqui duas grandes mudanças na ciência. A primeira delas se refere à passagem do racionalismo e do empirismo ao construtivismo. De um ideal de cientificidade que se baseia na ideia de ciência como uma representação da realidade tal como ela é em si mesma, passou-se a um ideal de cientificidade que se baseia na ideia de que o objeto científico é um modelo construído e não uma representação do real; uma aproximação sobre o modo de funcionamento da realidade, mas não o conhecimento absoluto dela. A segunda mudança refere-se à passagem da ciência antiga à ciência clássica ou moderna. Por que houve tais mudanças no pensamento científico?
Durante certo tempo, julgou-se que a ciência (como a sociedade) evolui e progride. Evolução e pregresso são duas ideias muito recentes, datam dos séculos XVIII e XIX, mas muito aceitas pelas pessoas. Basta ver o lema da bandeira brasileira para perceber como as pessoas acham natural falar em "Ordem e Progresso".
As noções de evolução e de progresso partem da suposição de que o tempo é uma linha contínua e homogênea. O tempo seria uma sucessão contínua de momentos, períodos, épocas, que iriam se somando uns aos outros, acumulando-se de tal modo que o que acontece depois é o resultado melhorado do que aconteceu antes. Contínuo e cumulativo, o tempo traria um aperfeiçoamento de todos os seres (naturais e humanos).
Evolução e progresso são a crença na superioridade do presente em relação ao passado e do futuro em relação ao presente. Assim, a física galilaico-newtoniana seria superior à aristotélica, e a física quântica seria superior à de Galileu e à de Newton. Pelo mesmo raciocínio, os europeus civilizados seriam, por sua evolução tecnológica, superiores aos africanos e aos índios, que teriam ficado "parados" num tempo arcaico não evoluído.
Evolução e progresso também supõem o tempo como uma série linear de momentos ligados por relações de causa e efeito, em que o passado é causa e o presente, efeito, vindo a tornar-se causa do futuro. Vemos essa ideia aparecer quando, por exemplo, livros de história apresentam as "influências" que um acontecimento anterior teria tido sobre outro, posterior.
Evoluir e progredir pressupõem uma concepção da história semelhante à que a biologia apresenta quando fala em germe, semente,  larva ou, atualmente, gene. O germe, a semente, a larva ou o gene são entes que contêm em si mesmos tudo o que lhes acontecerá, ou seja, a história de um ser nada mais é do que o desenvolver pleno daquilo que ele já era potencialmente.
Essa ideia encontra-se presente, por exemplo, na distinção entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Quando digo que um país é ou está desenvolvido, digo que sei que alcançou a finalidade à qual estava destinado desde que surgiu. Quando digo que um país é ou está subdesenvolvido, estou dizendo que a finalidade, que é a mesma para ele e para o desenvolvido, ainda não foi, mas deverá ser alcançada em algum momento. Não por acaso, as expressões "desenvolvido" e "subdesenvolvido" foram usadas para substituir duas outras, tidas como ofensivas e agressivas: países "adiantados" e países "atrasados", isto é, países "evoluídos" e "não evoluídos", países "com progresso" e "sem progresso".
Em resumo, evolução e progresso pressupõem continuidade temporal, acumulação causal dos acontecimentos, superioridade do futuro e do presente com relação ao passado, existência de uma finalidade a ser alcançada. Supunha-se que as mudanças científicas indicavam evolução ou progresso dos conhecimentos humanos.
Desmentindo a evolução e o progresso científicos
A filosofia das ciências, estudando as mudanças científicas, impôs um desmentido às ideias de evolução e progresso (bem como às de atraso e regressão). O que a filosofia das ciências compreendeu foi que as elaborações científicas e os ideais de cientificidade são diferentes e descontínuos.
Quando, por exemplo, comparamos a geometria clássica ou euclidiana (que opera com o espaço tridimensional), vemos que não se trata de duas etapas ou de duas fases sucessivas da mesma ciência geométrica, e sim de duas geometrias diferentes, com princípios, conceitos, objetos, demonstrações completamente diferentes. Não houve evolução e progresso de uma para outra, pois são duas geometrias diversas, e não geometrias sucessivas.
Quando comparamos as físicas de Aristóteles, Galileu-Newton e Einstein, não estamos diante de uma mesma física, que teria evoluído ou progredido, mas diante de três físicas diferentes, baseadas em princípios, conceitos, demonstrações, experimentações e, no caso das duas últimas, em tecnologias completamente diferentes. Em cada uma delas, os métodos empregados são diferentes; em cada uma delas, o que se deseja conhecer é diferente. E o mesmo pode ser dito de todas as ciências.
Verificou-se, portanto, uma descontinuidade e uma diferença temporal entre as teorias científicas como consequência não de uma forma mais evoluída, mais progressiva ou melhor de fazer ciência, mas como resultado de diferentes maneiras de conhecer e construir os objetos científicos, de elaborar os métodos e inventar tecnologias. O filósofo Gaston Bachelard criou a expressão ruptura epistemológica para explicar essa descontinuidade no conhecimento.

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