sexta-feira, 5 de junho de 2015

Três grandes concepções filosóficas da liberdade

Na história das ideias ocidentais, necessidade e contingência foram representadas por figuras da mitologia. A primeira, pelas três Parcas ou Moiras, representando a fatalidade, isto é, o destino inelutável de cada um de nós, do nascimento à morte.
Uma da Parcas ou Moiras era representada fiando o fio de nossa vida, enquanto a outra o tecia e a última o cortava, simbolizando a morte.
A contingência (ou o acaso) era representada pela Fortuna, mulher volúvel e caprichosa, que trazia nas mãos uma roda, fazendo-a girar de tal modo que quem estivesse no alto (a boa fortuna ou boa sorte) caísse (infortúnio ou má sorte) e quem estivesse embaixo fosse elevado.
Inconstante, incerta e cega, a roda da Fortuna era a pura sorte, boa ou má, contra a qual nada se poderia fazer, como na música de Chico Buarque: "Eis que chega a roda viva / e carrega o destino pra lá".
As teorias éticas procuraram sempre enfrentar o duplo problema da necessidade e da contingência, definindo o campo da liberdade possível.
As concepções de Aristóteles e de Sartre
A primeira grande teoria filosófica da liberdade é exposta por Aristóteles em sua obra Ética a Nicômaco e, com variantes, permanece ao longo dos séculos. Nessa concepção, a liberdade se opõe ao que é condicionado externamente (necessidade) e ao que acontece sem escolha deliberada (contingência).
Diz Aristóteles que é livre aquele que tem em si mesmo o princípio para agir ou não agir. A liberdade é concebida como o poder pleno e incondicional da vontade para determinar a si mesma. É pensada, também, como uma capacidade que não encontra obstáculos para se realizar nem é forçada por coisas alguma para agir.
Além de distinguir entre o necessário e o contingente, Aristóteles também distingue o contingente do possível: o primeiro é o puro acaso; o segundo é o que pode acontecer desde que um ser humano delibere e decida realizar uma ação. Assim, na concepção aristotélica, a liberdade é o princípio para escolher entre alternativas possíveis, realizando-se como decisão e ato voluntário.
Contrariamente à necessidade e à contingência, sob os quais o agente sofre a ação de uma causa externa que o obriga a agir de determinada maneira no ato voluntário livre o agente é causa de si, isto é, causa integral de sua ação. Sem dúvida, seria possível dizer que a vontade livre é determinada pela razão ou pela inteligência; nesse caso, seria preciso admitir que não é causa de si ou incondicionada, mas que é causada pelo raciocínio ou pelo pensamento.
No entanto, como disseram os filósofos posteriores a Aristóteles, a inteligência inclina a vontade para certa direção, mas não a obriga nem a constrange, tanto assim, que podemos agir na direção contrária à indicada pela inteligência ou razão. É por ser livre e incondicionada que a vontade pode seguir ou não os conselhos da consciência. Na tradição racionalista, a liberdade será ética quando o exercício da vontade estiver em harmonia com a direção apontada pela razão.
Em sua obra O ser e o nada, o filósofo francês Jean-Paul Sartre levou essa concepção ao ponto limite. Para ele, a liberdade é a escolha incondicional que o próprio homem faz de seu ser e de seu mundo. Quando julgamos estar sob o poder de forças externas mais poderosas do que nossa vontade, esse julgamento é uma decisão livre, pois outros homens, nas mesmas circunstâncias, não se curvaram nem se resignaram.
Em outros termos, para Sartre, conformar-se ou resignar-se é uma decisão livre, tanto quanto não se resignar nem se conformar. Quando dizemos que não podemos fazer alguma coisa porque estamos fatigados, a fadiga é uma decisão nossa, tanto assim que outra pessoa, nas mesmas circunstâncias, poderia decidir não se sentir cansada e agir. Da mesma maneira, quando dizemos estar enfraquecidos e por isso não temos forças para fazer alguma coisa, a fraqueza é uma decisão nossa, pois outro poderia, nas mesmas circunstâncias, não se considerar fraco e agir.
Por isso, Sartre faz uma afirmação aparentemente paradoxal, dizendo que "estamos condenados à liberdade". Qual o paradoxo? Identificar liberdade e condenação, isto é, dois termos incompatíveis, pois é livre quem não está condenado.
O que Sartre pretende dizer? Que, para os humanos, a liberdade é como a necessidade e a fatalidade: não podemos escapar dela. É ela que define a humanidade dos humanos, sem escapatória.
A concepção que une necessidade e liberdade 
A segunda concepção da liberdade foi, inicialmente desenvolvida no período helenístico pelo estoicismo. Essa concepção, modificada em vários aspectos, ressurge no século XVII com Espinosa e, no século XIX, com Hegel. Nela é conservada a ideia aristotélica de que a liberdade é a autodeterminação, assim como a ideia de que é livre aquele que age sem ser forçado nem constrangido por nada ou por ninguém e, portanto, age impulsionado espontaneamente por uma força interna ao seu próprio ser.
No entanto, diferentemente de Aristóteles e de Sartre, esses filósofos não situam a liberdade no ato de escolha realizado pela vontade individual, separada da necessidade e oposta a ela. Eles a colocam na atividade de cada um como parte de um todo necessário, o qual age livremente porque age necessariamente. Necessário, aqui, é aquilo que age apenas pela força interna de sua própria natureza.
O todo pode ser a natureza (no caso dos estoicos), a substância (no caso de Espinosa) ou o espírito como história (no caso de Hegel). Em qualquer dos casos, natureza, substância e espírito são a totalidade como poder absoluto de ação, agindo segundo seus próprios princípios. Como nada exterior obriga a natureza, a substância ou o espírito agir, eles são livres, pois agem, apenas por seu poder interno.
No entanto, visto que essa ação provém da essência ou do próprio ser do todo, sua ação não é contingente nem meramente possível, mas necessária. Em outras palavras, é porque o todo é o que é e possui o ser que possui que ele age da maneira como age. Seu agir é uma necessidade livre ou uma liberdade necessária porque a necessidade não é um poder externo que obriga a liberdade a agir, mas é apenas a lei interna que a própria liberdade criou para sua própria ação.
Ou seja, essa totalidade, necessária e livre em si mesma, instaura, pela ação de sua liberdade, leis e normas necessárias para toda a realidade ou para todas as suas partes (os indivíduos constituídos por ela).
Isso significa que a liberdade não é um poder incondicionado para escolher, a natureza não escolhe, a substância não escolhe, o espirito não escolhe, mas é o poder do todo para agir em conformidade consigo mesmo, sendo necessariamente o que é e fazendo necessariamente o que faz.
Como podemos observar, essa concepção não mantém a oposição entre a liberdade e necessidade, mas afirma que a necessidade é a maneira pela qual a liberdade do todo se manifesta. Em outras palavras, a totalidade é livre porque se põe a si mesma na existência e define por si mesma as leis e as regras de sua atividade, e é necessária porque tais leis e regras exprimem necessariamente o que ela é e faz. Liberdade não é escolher e deliberar, mas agir ou fazer alguma coisa em conformidade com a natureza do agente que, no caso, é o todo.
O que é, então, a liberdade humana enquanto o homem é uma parte constituída pelo todo e que age no interior do todo?

São duas as respostas a essa questão:
1. a primeira (dada pelos estoicos e por Hegel) afirma que o todo é racional e que suas partes também o são, sendo livres quando agirem em conformidade com as leis racionais do todo, para o bem da totalidade;

2. a segunda (dada por Espinosa) afirma que as partes são da mesma essência que o todo e, portanto, são racionais e livres como ele, dotadas de força interior para agir por si mesmas, de sorte que a liberdade é tomar parte ativa na atividade do todo.
Tomar parte ativa significa, por um lado, conhecer as condições e causas estabelecidas pelo todo e o modo como elas determinam nossas ações, e, por outro, em virtude de tal conhecimento, não ser um joguete das condições e causas que atuam sobre nós, mas agir sobre elas também. Não somos livres para escolher tudo, mas o somos para fazer tudo quanto esteja de acordo com nosso ser e com nossa capacidade de agir, graças ao conhecimento que temos de nós mesmos e das circunstâncias.
Para os estoicos, o homem livre é aquele cuja razão conhece a necessidade natural e a necessidade de sua própria natureza e tem força para guiar e dirigir a vontade para que esta exerça um poder absoluto sobre a irracionalidade dos instintos e impulsos, isto é, sobre as paixões.
Para Espinosa, o homem livre é aquele que age como causa interna, completa e total de sua ação, decorrente do desenvolvimento espontâneo da essência racional do agente. Em outras palavras, assim como o todo age livremente pela necessidade de sua própria essência. Somos livres quando realizamos nosso ser como uma potência interna capaz de uma pluralidade simultânea de ideias, afetos e ações que decorrem apenas de nosso próprio ser. Somos livres quando o que somos, o que sentimos, o que fazemos e o que pensamos exprimem nossa força interna para existir e agir.
Para Hegel, o homem livre é uma figura que aparece na história e na cultura sob duas formas principais. Na primeira, a liberdade humana coincide com o surgimento da cultura, ou seja, é livre o homem que não se deixa dominar pela força da natureza e que a vence, dobrando-se à sua vontade por meio do trabalho, da linguagem e das artes. Sob essa primeira forma, podemos notar que a liberdade refere-se muito mais a uma atitude da humanidade, e não do indivíduo, a uma vitória da cultura sobre a natureza.
Em sua outra forma, o homem livre como indivíduo livre aparece na história em dois momentos sucessivos. O primeiro é o do surgimento do homem cristão ou o surgimento da interioridade cristã, que descobre a consciência como consciência de si; o segundo momento, decorrente do primeiro, é o do surgimento da individualidade racional moderna ou do indivíduo como consciência de si reflexiva. Nesse momento, o indivíduo vê sua razão e sua vontade independentes da natureza ou da necessidade natural e independentes da coação de autoridades externas na definição de seu pensamento e de sua vontade.
A liberdade como possibilidade objetiva
Além das concepções anteriores, há uma terceira, que procura unir elementos das duas outras. Afirma, como a segunda, que não somos um poder incondicional de escolha entre quaisquer possíveis, mas que nossas escolhas são condicionadas pelas circunstâncias naturais, psíquicas, culturais e históricas em que vivemos. Afirma, como a primeira, que a liberdade é um ato de decisão e escolha entre  vários possíveis. Todavia, não se trata da liberdade de querer alguma coisa, e sim (como já dizia Espinosa) de fazer alguma coisa. Somo livres para fazer alguma coisa quando temos o poder de fazê-la.
Essa terceira concepção de liberdade que encontramos em pensadores marxistas (Georg Lukács e Lucien Goldmann) e em pensadores vindos da fenomenologia e do existencialismo (como Merleau-Ponty), introduz a noção de possibilidade objetiva. O possível não é apenas alguma coisa sentida ou percebida subjetivamente por nós, mas é também, e sobretudo, alguma coisa inscrita objetivamente no seio da própria necessidade, indicando que o curso de uma situação pode ser mudado por nós, em certas direções e sob certas condições. A liberdade é a capacidade para perceber tais possibilidades e o poder para realizar aquelas ações que mudam o curso das coisas, dando-lhe outra direção ou outro sentido.
De fato, a não ser aqueles filósofos que afirmaram a liberdade como um poder absolutamente incondicional da vontade (como o fizeram, por razões diferentes, Kant e Sartre), os demais sempre levaram em conta a tensão entre nossa liberdade e as condições naturais,culturais, psíquicas, que nos determinam. As discussões sobre as paixões, os interesses, as circunstâncias histórico-sociais, as condições naturais sempre estiveram presentes na ética; por isso, uma ideia como a de possibilidade objetiva sempre esteve pressuposta ou implícita nas teorias sobre a liberdade.

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