segunda-feira, 30 de março de 2015

Aristóteles e a Ética como ação para a felicidade
No século IV a.C., Aristóteles estabeleceu uma primeira organização das ciências (no sentido antigo do termo, isso é, um saber sistematizado segundo critérios racionais de classificação), dividindo-as em dois grandes campos.
De um lado ficaram as ciências teoréticas, aquelas produzidas por teoria, contemplação, e que não criam seus objetos, pois se dedicam a pensar objetos que já existem e independem do pensamento. A finalidade dessas ciências está fora delas, pois seu objeto é exterior ao pensamento. Nesse grupo Aristóteles inclui a metafísica (que estuda os objetos não materiais e é denominada "filosofia primeira") e a física, subdividida em filosofia da natureza, biologia e psicologia.
De outro lado ficara as ciências práticas (ou ciências da práxis), que têm por objeto a ação humana. Segundo Aristóteles, essas ciências criam seus próprias objetos e encontram suas finalidades nelas mesmas. Criam seus objetos, pois a ação humana depende do pensamento; é pensando que agimos. No caso dessas ciências, o pensar e o agir estão intimamente conectados. Por isso Aristóteles afirma que elas encontram suas finalidades nelas mesmas: ao pensar as ações dos seres humanos, essas ciências não focam objetos exteriores, mas o próprio ser humano. Nesse grupo foram incluídas a economia, a política e a ética. A primeira cuida da administração da casa; a segunda, da gestão da cidade; e a última trata da organização da vida de cada um. São, pois, três ciências bastante integradas entre si, uma vez que todas tratam de nossas ações, cada uma relativa a determinada esfera: a vida de cada um, sua casa, sua cidade.
A filosofia ética, afirma Aristóteles, estuda as ações humanas baseadas naquilo que é natural em cada ser humano, seu caráter. O caráter, para ele, é o temperamento, isto é, o modo como se temperam em cada um de nós os quatros elementos básicos (quente, frio, seco e úmido) e os quatro humores (sangue, fleuma, bílis, amarela e bílis negra), de forma que um deles predomine sobre os demais. O temperamento dá origem a quatro tipos básicos de caráter: sanguíneo, fleumático, colérico e melancólico.
A ética aristotélica ensina a viver de acordo com o caráter, a disposição natural de cada um. Não se trata, porém, de simplesmente agir de modo predeterminado; a ética implica uma ação racional, isto é, pensada. Para Aristóteles, nós aprendemos a agir eticamente. Mas como isso seria possível? Segundo o filósofo grego, somos dotados de um apetite ou um desejo, isto é, de uma inclinação natural, para buscarmos o prazer e fugirmos da dor. O apetite é, porém, uma paixão (que para os gregos implicava passividade), o que se opõe à ação (atividade). A tarefa da ética é educar nosso apetite ou desejo para que evitemos o vício (para os gregos, a desmedida) e alcancemos a virtude (o equilíbrio), conquistada pelo exercício da prudência.
Quanto mais refletirmos sobre a finalidade das nossas ações, mantendo-nos na direção das ações virtuosas - as quais, segundo Aristóteles, têm a na felicidade o maior bem, por ter seu fim em si mesma -, quanto mais soubermos agir racionalmente, conduzindo nossos desejos para longe dos vícios, mais prudentes, melhores e felizes seremos.
Afinal, se não há bem maior que a felicidade, é porque todas as nossas ações e objetivos que perseguimos são, na verdade, meios para que alcancemos esse fim último. 


O homem, as viagens
O homem, bicho da Terra tão pequeno
chateia-se na Terra
lugar de muita miséria e pouca diversão,
faz um foguete, uma cápsula, um módulo
toca para a Lua
desce cauteloso na Lua
pisa na Lua
planta bandeirola na Lua
experimenta a Lua
coloniza a Lua
civiliza a Lua
humaniza a Lua
Lua humanizada: tão igual à Terra.
O homem chateia-se na Lua.
Vamos para Marte - ordena as suas máquinas.
Elas obedecem, o homem desce em Marte
pisa em Marte 
experimenta
coloniza
civiliza
humaniza Marte com engenho e arte.
Marte humanizado, que lugar quadrado.
Vamos a outra parte?
Claro - diz o engenho
Sofisticado e dócil.
Vamos a Vênus.
O homem põe o pé em Vênus,
Vê o visto - é isto?
Idem
Idem
Idem.
O homem funde a cuca se não for a Júpiter
proclamar justiça junto com injustiça
repetir a fossa
repetir o inquieto
repetitório.
Outros planetas restam para outras colônias.
O espaço todo vira Terra-a-terra.
O homem chega ao Sol ou dá uma volta
só para tever?
Não-vê que ele inventa
Roupa insiderável de viver no Sol.
Põe o pé e:
Mas que chato é o Sol, falso touro
espanhol domado.
Restam outros sistemas fora
do solar a colonizar.
Ao acabarem todos
só resta ao homem
(estará equipado?)
a dificílima dangerosíssima viagem
de si a si mesmo:
pôr o pé no chão
do seu coração
experimentar
colonizar
civilizar
humanizar
o homem
descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
a perene, insuspeita alegria
de con-viver.
DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Poesia completa.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. p. 718-719.


Sartre: a gratuidade da existência
Para Aristóteles, a essência humana existe antes mesmo de o ser humano existir. Ao longo da vida humana, a essência vai se realizando com a ação. Para compreender isso, pense em uma semente, como a do ipê. A semente traz em si mesma a identidade do vegetal. Sua germinação, crescimento e transformação em uma árvore florida nada mais são que a realização de sua essência.
A filosofia existencial se opõe a essa ideia e afirma que, no caso do ser humano, a existência precede a essência. O ser humano não tem uma essência ao nascer; vai construindo aquilo que é ao longo de sua vida, de sua existência.
Entre os filósofos existencialistas, destaca-se Jean-Paul Sartre. Em um estágio na Universidade de Berlim, conheceu os trabalhos de Husserl e ficou muito impressionado. Decidiu aplicar o método fenomenológico ao estudo da existência humana, mas sem afastar-se das ideias de Husserl, como fizera Heidegger. Escreveu vários livros sob essa influência, sendo o principal deles " O ser e o nada ", publicado em 1943.
Nessa obra, Sartre retoma o dualismo psicofísico do ser humano, mas para afirmar que, embora dual, o humano é uma unidade de corpo e consciência, que são inseparáveis, uma vez que um corpo sem consciência não é humano e uma consciência sem corpo é impossível. Utilizando conceitos da filosofia de Hegel, Sartre afirma que há no humano duas modalidades de ser: o corpo é um ser-em-si (que existe em si mesmo, que tem uma identidade), como as coisas, enquanto a consciência é um ser-para-si (que existe para si mesmo, que sabe que existe, mas que não tem uma identidade). Essa existência dual é geradora de angústia, pois o humano anseia ser idêntico a si mesmo (ser-em-si), mas não pode sê-lo; ao mesmo tempo, também não poderia ser pura consciência (ser-para-si), pois para que haja consciência é preciso que estejamos no mundo e só podemos estar no mundo encarnados, por meio do corpo.
Para Sartre, apenas os seres humanos são conscientes e a consciência é o único ser-para-si em meio a um mundo de coisas, de seres-em-si. No caso das coisas, a essência vem em primeiro lugar, dando uma identidade a cada ser. Mas, no caso do ser humano, por ser consciente (ter ciência de alguma coisa é saber; ter consciência é saber que sabe), a existência é anterior a essência. Isso significa que primeiro existimos, somos lançados no mundo, para que depois possamos ser alguma coisa. Nascemos sem essência e sem identidade e as construímos enquanto existimos, ao longo de nossas vidas. É por isso que Sartre abandona a noção de natureza humana, que se refere a uma essência comum a todos os humanos, para falar em uma condição humana.
A condição humana é marcada por três realidades, muito próximas daquelas identificadas por Heidegger: o humano é um ser-no-mundo; um ser com-os-outros; e um ser para-a-morte.
A condição humana determina que o ser humano construa sempre sua identidade. Ele nunca é alguma coisa, ele sempre está em determinada condição. Você, por exemplo, hoje é estudante do Ensino Médio, mas não será isso sempre; você está estudante, assim como um dia estará universitário profissional de determinada área, etc. Mas nenhuma dessas realidades dá ou dará a você uma identidade fixa. Por isso, Sartre afirma que humano não é propriamente um ser, mas um vir-a-ser, na medida em que ele é sempre um projeto.
Em sua relação com os outros, o ser humano recebe deles uma identidade. Por exemplo, um professor de Filosofia é reconhecido por seus alunos como professor, recebe deles a identidade de professor. Ele sabe, porém, que essa identidade é falsa, pois ela não o define, ele não é apenas professor, mas também pai, marido, amigo, irmão, etc. Como vivemos sempre a falta de identidade, ficamos animados quando nos percebemos reconhecidos pelos outros, que nos atribuem uma identidade. Então representamos essa identidade, agimos como se, de fato, fôssemos isso. A aceitação de uma identidade imposta por outro limita as possibilidades do indivíduo e, portanto, fere sua liberdade. A esse tipo de ação Sartre chama de má-fé, pois a pessoa que vive assim está mentindo para si mesma, e sabe disso. Viver na má-fé é viver uma existência inautêntica.
Uma existência autêntica é a recusa da má-fé e está fundada na afirmação da liberdade, que nada mais é do que a capacidade de fazer escolhas. Para Sartre, o ser humano está "condenado a ser livre" ´, pois a única escolha que ele não pode fazer é a de não ser livre. O ser humano é livre porque porque sua existência é gratuita, contingente, não tem uma finalidade definida. Na medida em que é nada, o humano pode ser tudo, pode ser qualquer coisa.
A liberdade se traduz no ato de escolha. Cada situação que vivemos nos coloca algumas possibilidades, e temos sempre que escolher entre essas possibilidades. Se você está na escola, por exemplo, pode decidir assistir ou não à aula. Toda escolha tem suas consequências, pelas quais somos responsáveis. Assim, a liberdade gera em nós uma angústia: a angústia de ter que decidir, a angústia de se saber responsável pela escolha e por suas consequências.
A escolha gera uma responsabilidade por toda a humanidade, pois, alguém escolhe sempre para si mesmo e para os outros. Se escolho, por exemplo, a vida do crime, estou afirmando que ela é uma boa opção, e não apenas para mim, mas para todos os outros seres humanos. E sou responsável por ela.
A filosofia de Sartre recebeu críticas por ser pessimista; mas, ao contrário, ela é a afirmação da abertura, da possibilidade. O ser humano é o ser da liberdade, da escolha, do projeto. A vida é sempre uma construção. Defendendo-se dessas críticas, Sartre afirmou, em uma palestra em 1946, que "o existencialismo é um humanismo". 
Escolhendo-me, escolho o homem
Se realmente a existência precede a essência, o homem é responsável pelo que é. Desse modo, o primeiro passo do existencialismo é o de pôr todo homem na posse do que ele é, de submetê-lo à responsabilidade total de sua existência. Assim, quando dizemos que o homem é responsável por si mesmo, não queremos dizer que o homem é apenas responsável pela sua estrita individualidade, mas que ele é responsável por todos os homens. A palavra subjetivismo tem dois significados, e os nossos adversários se aproveitaram desse duplo sentido. Subjetivismo significa, por um lado, escolha do sujeito individual por si próprio e, por outro lado, impossibilidade em que o homem se encontra de transpor os limites da subjetividade humana. É esse segundo significado que constitui o sentido profundo do existencialismo. Ao afirmarmos que o homem se escolhe a si mesmo, queremos dizer também que, escolhendo-se, ele escolhe todos os homens. De fato, não há um único de nossos atos que, criando o homem que queremos ser, não esteja criando, simultaneamente, uma imagem do homem tal como julgamos que ele deva ser. Escolher ser isso ou aquilo é afirmar, concomitantemente, o valor do que  estamos escolhendo, pois não podemos nunca escolher o mal; o que escolhemos é sempre o bem e nada pode ser bom para nós sem o ser para todos. Se, por outro lado, a existência precede a essência, e se nós queremos existir ao mesmo tempo que moldamos nossa imagem, essa imagem é válida para todos e para toda a nossa época. Portanto, a nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos supor, pois ela engaja a humanidade inteira. Se eu sou um operário e se escolho aderir a um sindicato cristão em vez de ser comunista, e se, por essa adesão, quero significar que a resignação é, no fundo, a solução mais adequada ao homem, que o reino do homem não é sobre a terra, não estou apenas engajando a mim mesmo: quero resignar-me por todos e, portanto, a minha decisão engaja toda a humanidade. Numa dimensão mais individual, se quero casar-me, ter filhos, ainda que esse casamento dependa exclusivamente de minha situação, ou de minha paixão, ou de meu desejo, escolhendo o casamento estou engajando não apenas a mim mesmo, mas a toda a humanidade, na trilha da monogamia. Sou, desse modo, responsável por mim mesmo e por todos e crio determinada imagem do homem por mim mesmo escolhido; por outras palavras: escolhendo-me, escolho o homem.
SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1984. p. 6-7. (Os Pensadores.)

sábado, 28 de março de 2015

Deleuze e Guattari e a revolução molecular
Gilles Deleuze denominou "sociedade de controle" a conformação social que opera segundo o biopoder. Sua principal característica é a abertura: enquanto a sociedade disciplinar precisava confinar os indivíduos em instituições para que o poder pudesse ser exercido sobre eles, agora isso já não é necessário. Deleuze mostra que as instituições disciplinares estão sendo desgastadas. Pouco a pouco, a escola parece estar sendo substituída pela noção de "formação permanente". Nenhum nível escolar é mais terminal;há sempre algo novo a aprender, e a formação nunca cessa. Nesse contexto, as tecnologias de ensin a distância ganham cada vez mais adeptos. Já não é necessário sair de casa nem ter um horário determinado para estudar.
Também a área da saúde tem passado por mudanças. Prioriza-se a prevenção, para evitar que se fique doente; em vez de internação, alguns casos são tratados em hospitais-dia, nos quais o paciente não permanece por longos períodos. Nas empresas e fábricas, a palavra de ordem é flexibilidade, e é cada vez mais comum que os funcionários possam organizar seu próprio tempo, muitas vezes trabalhando em casa. Por fim, mesmo nas prisões, o confinamento tem-se reduzido. Investe-se em penas alternativas, como prestação de serviços sociais, para reduzir ou substituir o encarceramento. Além disso, as pulseiras ou tornozeleiras eletrônicas, que monitoram os prisioneiros, têm permitido ampliar o cumprimento de penas fora das prisões.
O curioso é que essa aparente liberdade permite que sejamos controlados. Podemos fazer quase todas as operações financeiras pela internet, por exemplo, sem precisar ir a uma agência bancária. Isso nos dá uma sensação de liberdade; podemos pagar uma conta em qualquer horário, e não apenas quando a agência bancária está aberta. Mas, para essas mobilidade seja possível, todos os nossos dados financeiros estão disponíveis para um funcionário do banco a um clique no computador.
Deleuze exemplifica com a construção de autoestradas. Cortar o país com extensas rodovias parece muito inreressante, ao facilitar a mobilidade da população. Mas, ao mesmo tempo, a autoestrada permite que se controle esse deslocamento. Antes das autoestradas, as pessoas podiam escolher os caminhos, seguindo por pequenas estradas locais, por exemplo. Alguém saía da cidade B, e ninguém saberia localizá-lo durante o trajeto. Com a existência de uma autoestrada, sabe-se qual é o percurso. Hoje, com o uso do GPS popularizado, isso se tornou ainda mais simples, tomando uma dimensão que Deleuze não poderia imaginar há muitos anos.
O avanço da tecnoçogia eletrônica levou às últimas consequências a sociedade de controle descrita por Deleuze. O celular nos torna objeto de controle não apenas por meio de telefonemas, mas também de ferramentas que indicam em um mapa o local exato em que nos encontramos.
A frase "Sorria, você está sendo filmado!" é a síntese da sociedade de controle, que espalha câmeras de vigilância por todo lado. Sabendo que há controle, deixamos de fazer as coisas que talvez fizéssemos se não estivéssemos sob vigilância. E muitas vezes nos apropriamos desses mecanismos, sendo nós mesmos instrumentos de controle do outro. A letra da canção reproduzida abaixo, da banda Maneva, fala sobre isso.
" Sorria você está sendo filmado
Sorria, sorria, sorria você está sendo filmado
Não faça nada errado
Celulares me tornaram uma espécie de soldado
Que espera sempre o caos pra usar como cenário
Vadias, vadias, vadias eu filmo sua dança
Minha lente sempre alcança
A marca do biquini, a calça agarrada
Depois botar na rede e mostrar para a rapaziada
As brigas, as brigas, as brigas elas eu nunca aparto
Adoro as vias de fato, espero pelo sangue
Minhas lentes querem a chance
De botar lá no Datena um vídeo que seja chocante
Não não uso olhos para ver
A minha consciência perdi na adolescência
Bombardeado por novelas que mataram minha inocência
A violência foi vendida, a nudez oferecida
Agora é minha vez de fazer filme com a minha vida
Filme de supermercado mostra uma execução
Dez tiros no sujeito sem tempo de reação
A câmera no prédio flagrou aquela menina
Recebendo de um rapaz que a alma feminina
Violência banalizada e oferecida sem restrição
Nutrem os calos da alma que já não se importam com esta visão
Banda podre do mundo mostrada sem cortes e sem figurino
Se torna o passatempo de muitos meninos ".
Em termos políticos, a sociedade de controle se aproxima dos totalitarismos analisados por Hannah Arendt. Uma sociedade de controle é uma sociedade atomizada, que tende a isolar as pessoas, ao mesmo tempo que fornece os meios para que elas sejam controladas todo o tempo. Você poderia perguntar: por que isolamento, se hoje nos comunicamos o tempo todo pelas redes sociais, torpedos e mensagens instantâneas? Estas novas formas de comunicação pretendem aproximar as pessoas e criam a ilusão de que se pode estar em contato com um número quase infinito delas. Entretanto, ao ampliarmos de maneira indefinida o contato com as pessoas por meio de recursos eletrônicos, tendemos a ter contato cada vez mais superficial e ligeiro com todas elas. Assim, ao ampliarem a quantidade de contatos, essas novas tecnologias diminuem a profundidade desses mesmos contatos. Outra consequência desta forma de sociabilidade é o distanciamento cada vez maior da esfera política. Ao ter de lidar com um número excessivamente grande de demandas da vida privada, nossas energias e interesses são inteiramente canalizados para dentro dela, de maneira que nos afastamos cada vez mais da esfera pública.
Claro que isso não precisa ser assim. Os mesmos maios de controle podem ser meios de ação política. Falando de ação política na sociedade de controle, Deleuze foi direto: não se trata de "temer ou esperar, mas de buscar novas armas". Não podemos lutar politicamente hoje com as armas do passado, pois elas já não servem; precisamos buscar novas armas, inventar formas de ação para resistir ao potencial totalitário da sociedade de controle.
Deleuze e Guattari analisaram também o capitalismo sob diversos aspectos e pensaram em uma ação política para a sua transformação. Uma conclusão desses autores é que o capitalismo é um "sistema elástico", ao contrário do que pensavam os marxistas, que um modo de produção se transforma quando se esgotam suas possibilidades de exploração e ele chega ao seu limite, Deleuze e Guattari sustentam que o capitalismo sempre coloca seus limites mais adiante. Um exemplo é a contracultura e o movimento Hippie da década de 1960 que questionavam o mercado capitalista e, para se opor a ele, usavam roupas velhas e rasgadas. Para se opor à massificação, muitas vezes faziam suas próprias roupas, como forma de afirmar sua singularidade. Décadas depois do movimento, entretanto, o capitalismo se apropriou da estética Hippie transformando em mercadorias fabricadas em massa o que eles usavam para se opor ao sistema.
A força do capitalismo, segundo Deleuze e Guattari, reside no fato de que ele captura nossos desejos e nos faz desejar aquilo que o sistema quer que desejemos. Agimos de acordo com os nossos desejos, pensando que somos livres, mas estamos sendo controlados e manipulados. Os autores afirmam que essa é a mesma dinâmica usada pelo fascismo, que serviu de base para os governos totalitários. Mas, em vez de um "fascismo de Estado", trata-se de um "microfascismo", que é ainda mais eficaz porque passa despercebido e porque se estende por toda a sociedade.
Se a força desse fascismo reside no desejo, está aí também a possibilidade de fazer resistência. Deleuze e Guattari falam de uma micropolítica que se constrói nas relações cotidianas e que pode resistir ao fascismo da sociedade de controle.
Não podemos lutar contra o Estado com suas próprias armas, pois seremos vencidos. Não podemos simplesmente usar as do controle contra o controle. É necessário inventar novas armas. Para Deleuze e Guattari não faz muito sentido negar o Estado e achar que é possível destruí-lo; ao contrário, é preciso reconhecê-lo, conhecer sua força, para tentar mantê-lo afastado. E essa é uma luta constante, não é uma revolução que se faz, e depois dela o mundo se torna completamente outro.
Essa é a lição daquilo que eles denominam revolução molecular, uma revolução que se faz todo dia, nas pequenas coisas, procurando agir de modo não fascista cada um consigo mesmo e com aqueles que estão próximos. Inventar formas de viver o próprio desejo, não se deixando capturar e controlar. Não uma grande revolução, que porá fim  aos problemas e criará uma nova realidade, mas pequenas revoluções permanentes, que vão produzindo novos fluxos de desejo e de ações, novas possibilidades de ser, de sentir, de pensar, de agir. Esse seria um caminho possível para construir laços sociais que não nos deixem no isolamento, presas fáceis para um novo totalitarismo. 

Disciplina para a submissão
Segundo Foucault, foi a disciplina - invenção burguesa surgida no século XVIII - que sustentou o crescimento do capitalismo. É um tipo de poder que se exerce sobre indivíduos, sobre seus corpos.
Para que essa tecnologia de poder funcione com todo seu potencial, foram criadas "instituições disciplinares" nas quais os indivíduos são confinados: a fábrica, o exército, a prisão, o hospital, a escola. Nessas instituições, as pessoas são individualizadas. Cada indivíduo tem um prontuário, no qual se anota tudo o que lhe acontece. Por meio da disciplina o indivíduo pode ser conhecido, controlado e explorado, tirando-se dele tudo o que pode oferecer.
Foucault debruçou-se sobre uma dessas instituições e escreveu o livro Vigiar e punir: história da violência nas prisões, em que mostra como na história do Ocidente a punição aos criminosos foi se transformando - dos castigos físicos ao encarceramento -, como forma de impor ao condenado uma disciplina que lhe permitisse ser ressocializado. Embora a instituição pesquisada seja a prisão, a a análise sobre a disciplina é válida para qualquer instituição disciplinar. Tanto que na terceira parte do livro, na qual ele analisa o desenvolvimento das tecnologias disciplinares, o foco escolhido é a escola.
A função da disciplina é produzir "corpos dóceis", que possam ser moldados, configurados segundo as necessidades sociais. Assim são produzidos os corpos dos estudantes, dos soldados e policiais, e também dos trabalhadores. Os corpos disciplinados são corpos exercitados e submissos. Como afirma Foucault, a disciplina aumenta a força dos corpos em sentido político, tornando-os obedientes.A obediência e a conformação dos corpos os tornam mais produtivos.
Discorrendo sobre a maneira como os corpos são disciplinados, Foucault diz que a disciplina é uma "arte das distribuições". Sua primeira operação é a distribuição dos indivíduos no espaço. É necessário, portanto, delimitar esse espaço. Não é por acaso que a arquitetura das escolas é muito semelhante, assim como a arquitetura das fábricas ou dos quartéis: trata-se da organização de um espaço disciplinar. Nesse espaço, os indivíduos são distriduídos segundo uma lógica organizacional. Como exemplo, basta pensar em como os estudantes são distribuídos na escola, organizados por séries ou anos, por classes e grupos. Essa ação, segundo o filósofo, transforma uma "multidão confusa" em uma "multiplicidade organizada".
O segundo aspecto da tecnologia disciplinar é sua ação de controle das atividades. Numa instituição disciplinar, toda atividade é controlada, e esse controle começa pelo tempo: há o momento certo para cada coisa. O controle dos horários é um dos pilares da disciplina: cada indivíduo aprende a controlar seu corpo, de modo a ir ao banheiro no horário estabelecido, e não quando tiver vontade; almoçar no horário estipulado pela instituição, e não quando tiver fome. Um corpo assim disciplinado é um corpo muito mais eficiente e produtivo, seja para o estudo, seja para o trabalho.
A disciplina, por meio do adestramento dos corpos, produz indivíduos. E eles são o tempo todo vigiados e controlados. Quando se desviam do comportamento esperado, são punidos. A punição tem a função de normalizar sua ação, de fazer com que os indivíduos voltem a agir conforme o esperado.
Biopoder: bem-estar social 
Uma vez consolidada a tecnologia de poder disciplinar, Foucault afirma que, por volta do fim do século XVIII, começa a se constituir uma nova tecnologia, que ele propõe denominar  biopoder, um poder sobre a vida. Mas o biopoder não deve ser confundido com o poder soberano.
O poder soberano era aquele que decidia sobre a vida e a morte dos súditos(Hobbes), ao passo que o biopoder é aquele que procura administrar a vida de uma população. O biopoder é complementar ao poder disciplinar, mas apresenta diferenças. Já vimos que o poder disciplinar se exerce sobre os indivíduos adequando-os à norma. O biopoder é diferente porque se exerce sobre grandes grupos de indivíduos já disciplinados que formam as populações. O poder disciplinar é, portanto, uma condição para que o biopoder se exerça e, enquanto a tecnologia centrada no corpo é individualizante, a tecnologia centrada na vida é massificante.
A tecnologia do biopoder está voltada para a manutenção da vida das populações organizadas pelo Estado como corpo político. Ela é a base do chamado "Estado de bem-estar social", que se preocupa em oferecer condições razoáveis de vida para toda a população. É por meio do biopoder que são criados programas de previdência social, orientados para garantir a saúde e a aposentadoria dos trabalhadores, bem como sistemas públicos de saúde, agindo, por exemplo, no atendimento à população em campanhas de vacinação em massa, como forma de prevenir doenças. O biopoder constitui o que Foucault denomna "sociedades de segurança", em que as ações dos governos já não estão voltadas para a disciplina( já estão todos disciplinados e individualizados ), mas para a segurança da população em múltiplos sentidos. E a garantia da segurança é feita pelo controle populacional.
Segundo Foucault, essa tecnologia inverte o princípio do poder de soberania; trata-se agora de "fazer viver e deixar morrer". O Estado é responsável por fazer com que os cidadãos vivam mais e melhor, evitando as mortes desnecessárias. A morte se torna um "problema de Estado": só uma autoridade legalmente constituída pode atestar que alguém morreu, emitindo uma certidão de óbito, assim como é o Estado que emite uma "certidão de nascimento".
Na visão de Foucault, as sociedades contemporâneas atuam com as duas tecnologias de poder simultaneamente: a disciplina e o biopoder. O cidadão legalmente constituído vive em uma situação de permanente controle por parte dos vários mecanismos estatais, e essa disciplina lhe garante segurança e bem estar.     

terça-feira, 24 de março de 2015

As propostas éticas de Epicuro e dos estoicos:
Diferentemente de Platão e Aristóteles que valorizavam o papel do intelecto na busca por uma vida feliz em todos os setores da vida, Epicuro(341-271 a.c.). recomendava o caminho do prazer. Para ele, felicidade é o prazer resultante da satisfação dos desejos, como crê a maioria das pessoas. Ele pensava que para ser feliz o ser humano deveria buscar fundamentalmente o prazer, visto que, tudo é matéria. Com base nesta visão sensualista(baseada nas sensações), Epicuro dirá que todos os seres buscam o prazer e fogem da dor e que, para sermos felizes, devemos gerar, primeiramente, as condições materiais e psicológicas que nos permitam experimentar apenas o prazer da vida. Ele pensava que uma das principais causas de angústia e infelicidade seriam as preocupações religiosas e as superstições referindo-se assim, ao temor que certas crenças e religiões nos impõem. Por exemplo, os gregos temiam muito ofender seus deuses e serem terrivelmente punidos por eles. Também viviam sob o pavor de que forças divinas interferissem em suas vidas, mudando sua sorte ou tirando-lhes os seus entes queridos. Todo este sofrimento poderia ser evitado, segundo o filósofo, se as pessoas compreendessem que o universo inteiro é constituído de matéria, inclusive a alma humana. Veriam que tudo o que acontece pode ser explicado pelo movimento aleatório dos átomos, que produz forças cegas e indiferentes ao destino humano. Aqui Epicuro segue a teoria atomista e mecanicista de Demócrito(460-370 a.c.).Mediante esta compreensão materialista do universo e do ser humano, Epicuro sustentava que as pessoas também se livrariam de outro grande fator de angústia e infelicidade: o medo da morte. " Acostuma-te à ideia de que a morte para nós não é nada, visto que todo o bem e todo mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações. A consciência clara de que a morte não significa nada para nós proporciona a fruição da vida efêmera, sem querer acrescentar-lhe tempo infinito e eliminando o desejo de imortalidade. [...] quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando a morte está presente, nós é que não estamos. [Carta sobre a felicidade [a Meneceu], p.27-28". Epicuro classifica os desejos de três formas:
.naturais e necessários - como os desejos de comer, beber e dormir;
.naturais e desnecessários - como o desejo de comer alimentos refinados, tomar bebidas especiais e caras e dormir em lençóis luxuosos etc.;
.não naturais e desnecessários - como os desejos de riqueza, fama e poder.
Contentar-se com pouco seria o segredo do prazer e da felicidade. Com a expectativa reduzida não há decepção, e um grande pode advir de um copo de água. Como nem todos os prazeres contribuem para uma vida feliz, segundo Epicuro, podemos concluir que alguns prazeres são superiores a outros, por isso, ele recomendava que o homem deveria agir com prudência racional. O estado de imperturbabilidade da alma em relação ao que ocorre no mundo era o que buscava Epicuro em sua ética. Este estado era chamado de ataraxia e seria o último estágio da busca pela felicidade, segundo ele.
Para os estoicos conhecidos principalmente por meio dos pensamentos de Zenão de Cício(335-264 a.c.), ser feliz é viver de acordo com a ordem cósmica, aceitando e amando o próprio destino. Para isso, devemos primeiro entender que o estoicismo concebe o universo como kósmos, "universo ordenado e harmonioso", composto de um princípio passivo( a matéria ) e de um princípio ativo, racional, inteligente ( o chamado logos ), que permeia, anima e conecta todas as suas partes.
Esse princípio ativo ou inteligência universal que os estoicos chamavam de providência regeria toda a realidade, equivalente ao que se pode denominar Deus. Tudo o que existe e acontece tem um objetivo e uma razão de ser, pois faz parte da inteligência universal e divina. Assim, tudo é necessário, ou seja, não pode ser diferente do que é, pois, no kósmos, todos os eventos estão organicamente predeterminados. Isso inclui a vida de cada um, o que quer dizer que, na concepção estoica, cada pessoa nasce com um destino definido.Para os estoicos, existem coisas que dependem de nós e outras que não dependem só de nós, depende de nós por exemplo, elaborar um bom trabalho, ser bom ou ser generoso. Não depende de nós(ou só de nós), ganhar na loteria, conquistar a pessoas amada, interferir na ordem do universo. Usar a vontade para querer aquilo que posso me faz verdadeiramente feliz.
Com base neste raciocínio, os estoicos procuraram orientar a conduta das pessoas estabelecendo a seguinte distinção entre as coisas:
.boas - são aquelas que dependem de nós e que devemos querer e buscar durante a vida para sermos felizes, tais como, ser prudente, justo, corajoso;
.más - são aquelas que dependem de nós, mas que, devemos evitar, tais como, ser imprudente, injusto, covarde, guloso, raivoso;
.indiferentes - são aquelas que não dependem de nós e com as quais não devemos nos preocupar, sob pena de gerar infelicidade, como é o caso da morte, do poder, da saúde ou doença, da riqueza ou pobreza, entre outras. A infelicidade ocorre, portanto, segundo os estoicos, quando não conduzimos corretamente nossos pensamentos e não evitamos as chamadas coisa más. Ou quando nos preocupamos com as tais coisas indiferentes(algo muito frequente) o que conduz à formação de juízos errôneos e opiniões equivocadas sobre os acontecimentos e o consequente despertar das paixões(que é o resultado do uso inadequado da razão). Assim, dominar as paixões é o objetivo principal da ética estoica.
Veja o conselho de um pensador estoico grego, Epiteto[55-135], que foi escravo em Roma durante a maior parte de sua vida:
"Lembra-te que não é aquele que te diz injúrias, nem aquele que te bate, quem te ultraja, mas sim a opinião que tens deles, e que te faz olhá-los como gente por quem és ultrajado. Quando alguém te magoa ou te irrita, saiba que não é aquele homem que te irrita, mas sim tua opinião. Esforça-te portanto, acima de tudo, para não te deixar levar por tua imaginação. (Citado em Bosch, A filosofia e a felicidade, p.103)".