quinta-feira, 28 de maio de 2015

A metafísica aristotélica.

Na Metafísica, Aristóteles afirma que a Filosofia Primeira estuda os primeiros princípios e as causas primeiras de todas as coisas e investiga "o Ser enquanto Ser". A Filosofia Primeira estuda as essências físicas, astronômicas, humanas, etc., pois cabe às diferentes ciências estudá-las como diferentes entre si. à metafísica cabem três estudos:
1. o estudo do ser divino, a realidade primeira e suprema da qual todo o restante procura aproximar-se, imitando sua perfeição imutável. As coisas se transformam incessantemente, diz Aristóteles, porque desejam encontrar sua essência total e perfeita, imutável como a essência divina. Por isso, o ser divino é o Primeiro Motor Imóvel do mundo, isto é, aquilo que, sem agir diretamente sobre as coisas, ficando à distância delas, as atrai, é desejado por elas. Tal desejo as faz mudar para, um dia, não mais mudar (esse desejo, diz Aristóteles, explica por que há o devir e por que o devir é eterno, pois as coisas naturais nunca poderão alcançar a perfeição imutável).
A mudança ou o devir são a maneira pela qual a natureza, ao seu modo, se aperfeiçoa e busca imitar a perfeição do imutável divino. O ser divino chama-se Primeiro Motor Imóvel porque é o princípio que move toda a realidade ao mesmo tempo que não se move e não é movido por nenhum outro ente. Como já vimos, movimento significa 'mudança', 'alterações qualitativas e quantitativas sofridas'; nascer é perecer, e o ser divino, perfeito, não foi gerado, por isso, nunca muda;
2. o estudo dos primeiros princípios e causas primeiras de todos os seres ou essências existentes;
3. o estudo das propriedades ou atributos gerais de todos os seres, graças aos quais podemos determinar a essência particular de um ser particular existente. A essência ou ousia é a realidade primeira e última de um ser, aquilo sem o qual um ser não poderá existir ou deixará de ser o que é. À essência, entendida dessa perspectiva universal. Aristóteles dá o nome de substância, e a metafísica estuda a substância em geral.
Os principais conceitos
De maneira muito breve e simplificada, os principais conceitos da metafísica aristotélica (eque se tornarão as bases de toda a metafísica ocidental) podem ser assim resumidos:
. primeiros princípios: são os três princípios que estudamos na lógica, isto é, identidade, não contradição e terceiro excluído. Os princípios lógicos são ontológicos porque definem as condições sem as quais um ser não pode existir nem ser pensado; os primeiros princípios garantem, simultaneamente, a realidade e a racionalidade das coisas;
. causas primeiras: são aquelas que explicam o que a essência é e também a origem e o motivo da sua existência. Causa (para os gregos) significa não só o porquê de alguma coisa, mas também o o quê e o como uma coisa é o que ela é. As causas primeiras nos dizem o que é, como é, por que é e para que é uma coisas. São quatro as causas primeiras:
1. causa material, isto é, aquilo de que um ser é feito, sua matéria (por exemplo, água, fogo, ar, terra);
2. causa formal, isto é, aquilo que explica a forma que um ser possui (por exemplo, o rio ou o mar são formas da água; a mesa é a forma assumida pela matéria madeira com a ação do carpinteiro). A forma é propriamente a essência de um ser, aquilo que ele é em si mesmo ou aquilo que o define em sua identidade e diferença com relação a todos os outros;
3. causa eficiente ou motriz, isto é, aquilo que explica como uma matéria recebeu uma forma para constituir uma essência (por exemplo, o ato sexual é a causa eficiente que faz a matéria óvulo, ao receber o esperma, adquirir a forma de um novo animal ou de uma criança; o carpinteiro é a causa eficiente que faz a madeira receber a forma de mesa; etc.);
4. a causa final, isto é, a causa que dá motivo, a razão ou a finalidade para alguma coisa existir e ser tal como ela é (por exemplo, o bem comum é a causa final da política; a flor é a causa final da transformação da semente em árvore; o Primeiro Motor Imóvel é a causa final do movimento dos seres naturais, etc.);
. matéria: é o elemento de que as coisas da natureza, os animais, os homens, os artefatos são feitos; sua principal característica é possuir virtualidades ou conter em si mesma possibilidades de transformação, isto é, de mudança;
. forma: é o que individualiza e determina uma matéria, fazendo existir as coisas ou os seres particulares; sua principal característica é ser aquilo que uma essência é;
. potência: é a virtualidade que está contida numa matéria e pode vir a existir, se for atualizada por alguma causa; por exemplo, a criança é um adulto em potência ou em potencial; a semente é a árvore em potência ou em potencial;
ato: é a atualização de uma matéria por uma forma e numa forma que atualizou uma potência contida na matéria. Por exemplo, a árvore é o ato da semente, o adulto é o ato da criança, a mesa é o ato da madeira, etc.
Potência e matéria são idênticas, assim como forma e ato são idênticos. A matéria ou potência é uma realidade passiva que precisa do ato e da forma, isto é, da atividade que cria os seres determinados. Graças aos conceitos de potência e ato, a metafísica aristotélica pode explicar a causa e a racionalidade de todos os movimentos naturais ou dos seres físicos, isto é, de todos os seres dotados de matéria e forma. O devir não é aparência nem ilusão, ele é o movimento pelo qual a potência se atualiza, a matéria recebe a forma e muda de forma.
. essência: é a unidade interna e indissolúvel entre uma matéria e uma forma. Essa unidade lhe dá um conjunto de propriedades ou atributos que a fazem ser necessariamente aquilo que ela é. Assim, por exemplo, um ser humano é por essência um animal mortal racional dotado de vontade, gerado por outros semelhantes a ele e capaz de gerar outros seres semelhantes a ele, etc.;
. acidente: é uma propriedade ou atributo que uma essência pode ter ou deixar de ter sem perder seu ser próprio. Por exemplo, um ser humano é racional ou mortal por essência, mas é baixo ou alto, gordo ou magro, negro ou branco, por acidente.
. substância: é aquilo em que se encontram a matéria-potência, a forma-ato, onde estão os atributos essenciais e acidentais, sobre o qual agem as quatro causas; em suma, é o Ser propriamente dito.
. predicados: são as categorias que vimos no estudo da lógica e que também são ontológicas, porque se referem à estrutura e ao modo de ser da substância ou da essência (quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo, posse, ação, paixão). Vimos, ao estudar a lógica, que a substância é a primeira categoria. Aristóteles explica que, enquanto todas as categorias são predicados atribuídos a um sujeito, a substância é a primeira categoria. Aristóteles explica que, enquanto todas as categorias são predicados atribuídos a um sujeito, a substância não é atribuída a ninguém porque ele é, justamente, o sujeito que recebe os predicados. Os predicados atribuídos a uma substância são constitutivos de sua essência, pois toda a realidade pode ser conhecida porque: possui qualidades (mortal, imortal, finito, infinito, bom, mau, etc.); quantidades (um, muitos, alguns, pouco, muito, grande, pequeno); relaciona-se com outros (igual, diferente, semelhante, maior, menor, superior, inferior); está em algum lugar (aqui, ali, perto, longe, etc.); está no tempo ( antes, depois, agora, etc.); realiza ações ou faz alguma coisa (anda, pensa, dorme, corta, cai, etc.) e sofre ações de outros seres (é cortado, é preso, é puxado, etc.).
As categorias ou predicados podem ser essenciais ou acidentais, isto é, podem ser necessários e indispensáveis à natureza própria de um ser ou podem ser algo que um ser possui por acaso ou que lhe acontece por acaso, sem afetar sua natureza. 

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Para que Filosofia?

Ora, muitos fazem outra pergunta: "Afinal, para que filosofia?". É uma pergunta interessante. Não vemos nem ouvimos ninguém perguntar por exemplo, "Para que matemática ou física?", "Para que geografia ou geologia/", "Para que biologia ou psicologia?", "Para que astronomia ou química?", "Para que pintura, literatura, música ou dança?". Mas todo mundo acha muito natural perguntar: "Para que filosofia?".
Em geral, essa pergunta costuma receber uma resposta irônica, conhecida dos estudantes de filosofia: "A filosofia é uma ciência com a qual e sem a qual o mundo permanece tal e qual". Ou seja, a filosofia não serve para nada. Por isso, costuma-se chamar de "filósofo" alguém distraído, com a cabeça no mundo da lua, pensando e dizendo coisas que ninguém entende e que são completamente inúteis.
Essa pergunta, "Para que filosofia?", tem sua razão de ser. Em nossa cultura e em nossa sociedade, costumamos considerar que alguma coisa só tem o direito de existir se tiver alguma finalidade prática muito visível e de utilidade imediata. Quando se pergunta "Para quê?", o que se pergunta é: "Qual a utilidade?", "Que uso proveitoso ou vantajoso posso fazer disso?".
Eis por que ninguém pergunta "Para que as ciências?", pois todo mundo imagina ver a utilidade das ciências nos produtos da técnica. Todo mundo também imagina ver a utilidade das artes, tanto por causa da compra e venda das obras de arte quanto porque nossa sociedade vê os artistas como gênios que merecem ser valorizados (ao mesmo tempo que, paradoxalmente, é capaz de rejeitá-los se suas obras forem verdadeiramente revolucionárias e inovadoras, pois, nesses casos, eles não são "úteis" para a manutenção do poder estabelecido).
Ninguém, todavia, consegue perceber para que serviria a filosofia. Parece que o senso comum não enxerga algo que os cientistas sabem muito bem. As ciências pretendem ser conhecimentos verdadeiros, obtidos graças a procedimentos rigorosos de pensamento; pretendem agir sobre a realidade por meio de instrumentos e objetos técnicos; pretendem fazer progressos nos conhecimentos, corrigindo-os e aumentando-os.
Ora, todas essas pretensões das ciências pressupõem que elas admitem a existência da verdade, a necessidade de procedimentos corretos para bem usar o pensamento, o estabelecimento da tecnologia como aplicação prática de teorias. Sobretudo, pressupõem que elas confiam na racionalidade dos conhecimentos.
Verdade, pensamento racional, procedimentos especiais para conhecer fatos, aplicação prática de conhecimentos teóricos, correção e acúmulo de saberes: esses propósitos das ciências não são científicos, são filosóficos e dependem de questões filosóficos. O cientista parte deles como questões já respondidas, mas é a filosofia que as formula e busca respostas para elas.
Assim, o trabalho das ciências pressupõe o trabalho da filosofia, mesmo que o cientista não seja filósofo.
No entanto, como apenas os cientistas e os filósofos sabem disso, a maioria das pessoas continua afirmando que a filosofia não serve para nada.
A filosofia como fundamentação teórica e crítica
Nessa condição, a filosofia se volta para o estudo dos vários modos de conhecimento (percepção, imaginação, memória, linguagem, inteligência, experiência, reflexão) e dos vários tipos de atividades interiores e comportamentos externos dos seres humanos como expressões da vontade, do desejo e das paixões. Ela procura descrever as formas e os conteúdos desses modos de conhecimento e desses tipos de atividade e comportamento como relação do ser humano com o mundo, consigo mesmo e com os outros.
Para realizar seu trabalho, a filosofia investiga e interpreta o significado de ideias gerais, como realidade, mundo, natureza, cultura, história, verdade, falsidade, humanidade, temporalidade, espacialidade, qualidade, quantidade, subjetividade, objetividade, diferença, repetição, semelhança, conflito, contradição, mudança, necessidade, possibilidade, probabilidade, etc.
A atividade filosófica é, portanto, uma análise, uma reflexão e uma crítica. Essas três atividades são orientadas elaboração filosófica de ideias gerais sobre a realidade e os seres humanos. Portanto, para que essas três atividades se realizem, é preciso que a filosofia se defina como busca do fundamento (princípios, causas e condições) e do sentido (significação e finalidade) da realidade em suas múltiplas formas. Para tanto, ela deve indagar o que essas formas de realidade são, como são e por que são, e procurar as causas que as fazem existir, permanecer, mudar e desaparecer.
A filosofia não é ciência: é uma reflexão sobre os fundamentos da ciência, isto é, sobre procedimentos e conceitos científicos. Não é religião: é uma reflexão sobre os fundamentos da religião, isto é, sobre as causas, origens e formas das crenças religiosas. Não é arte: é uma reflexão sobre os fundamentos da arte, isto é, sobre os conteúdos, as formas, as significações das obras de arte e do trabalho artístico. Não é sociologia nem psicologia, mas a interpretação e avaliação crítica dos conceitos e métodos da sociologia e da psicologia. Não é política, mas interpretação, compreensão e reflexão sobre a origem, a natureza e as formas do poder e suas mudanças. Não é história, mas reflexão sobre o sentido dos acontecimentos inseridos no tempo e compreensão do que seja o próprio tempo.
Útil? Inútil?
O primeiro ensinamento filosófico é perguntar: "O que é o útil?", "Para que e para quem algo é útil?", "O que é o inútil?, "Por que e para quem algo é inútil?".
O senso comum de nossa sociedade considera útil o que dá prestígio, poder, fama e riqueza. Julga o útil pelos resultados visíveis das coisas e das ações, identificando sua possível utilidade, como na famosa expressão "levar vantagem em tudo". Não poderíamos, porém, definir o útil de outra maneira? Vamos ver o que dizem alguns filósofos de diferentes épocas e lugares.
Platão definia a filosofia como um saber verdadeiro que deve ser usado em benefício dos seres humanos para que vivam numa sociedade justa e feliz.
Descartes dizia que a filosofia é o estudo da sabedoria, conhecimento perfeito de todas as coisas que os humanos podem alcançar para o uso da vida, a conservação da saúde e a invenção das técnicas e das artes com as quais ficam menos submetidos às forças naturais, às intempéries e aos cataclismos.
Kant afirmou que a filosofia é o conhecimento que a razão adquire de si mesma para saber o que pode conhecer, o que pode fazer e o que pode esperar, tendo como finalidade a felicidade humana.
Marx declarou que a filosofia havia passado muito tempo apenas contemplando o mundo e que se tratava, agora, de conhecê-lo para transformá-lo, de modo que se alcançasse justiça, abundância e felicidade para todos.
Merleau-Ponty escreveu que a filosofia é um despertar para ver e mudar nosso  mundo.
Espinosa afirmou que a filosofia é um caminho árduo e difícil, mas que pode ser percorrido por todos, se desejarem a liberdade e a felicidade.
Qual seria, então, a utilidade da filosofia?
Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for útil; se não se submeter às ideias dominantes e aos poderes estabelecidos for útil; se buscar compreender a significação do  mundo, da cultura, da história for útil, se conhecer o sentido das criações humanas nas artes, nas ciências e na  política for útil; se dar a cada um e à sociedade os meios para sermos conscientes de nós mesmos e de nossas ações numa prática que deseja a liberdade e a felicidade para todos for útil, então podemos dizer que a filosofia é o mais útil de todos os saberes de que os seres humanos são capazes.
  

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Filosofia e religião.

A religiosidade: Desde muito cedo os seres humanos percebem regularidades na natureza e sabem que não são a causa delas, percebem também que há na natureza coisas boas e ameaçadoras e reconhecem que não são os criadores delas. A percepção da realidade exterior como algo independente da ação humana nos conduz à crença em poderes superiores ao humano e à busca de meios para nos comunicarmos com eles. Nasce, assim, a crença na(s) divindade(s).
A consciência também é responsável pela descoberta da morte. Um filósofo disse que somente os seres sabem que são mortais e outro escreveu: " O animal acaba, mas o homem morre". O que isso quer dizer?
Quando indicamos os principais traços da cultura, observamos que nela e por ela os seres humanos têm a experiência do tempo. Vimos também que outro aspecto fundamental da cultura é a atividade do trabalho. Ora, ao trabalhar, as pessoas se relacionam com um tempo que não é o presente, e sim o futuro, pois o trabalho é feito em vista de algo que ainda não existe.
Vimos também, ao estudarmos a memória, que ela é responsável pelo sentimento da identidade pessoal e da continuidade de uma vida que transcorre no tempo. A percepção do tempo, o trabalho e a memória fazem com que as pessoas sejam capazes de estabelecer relações com o ausente: o passado lembrado, o futuro esperado.
Se reunirmos numa única experiência o sentimento do tempo e o da identidade pessoal, notaremos que os humanos são conscientes de que alguns seres e coisas desaparecem no tempo e outros surgem no tempo. Esses seres e coisas permanecem durante certo período porque os humanos são capazes de ligar passado, presente e futuro, isto é, são capazes de perceber que existem e possuem identidade. Mas também são conscientes de que podem desaparecer um dia. Ou seja, sabem que morrem.
Ora, por sermos conscientes tanto do tempo como uma presença (o presente) situada entre duas ausências (o passado e o futuro) quanto de nossa identidade e da identidade de nossos semelhantes, concebemos a permanência dessa identidade num tempo futuro, isto é, concebemos uma existência futura, num outro lugar ou num outro mundo, para onde vamos após a morte.
A crença numa vida futura explica por que uma das primeiras manifestações religiosas em todas as culturas são os rituais fúnebres, que asseguram  a entrada dos mortos na vida futura, e a busca de meios para comunicar-se com eles.
A crença em divindades e numa outra vida após a morte defino o núcleo da religiosidade e se exprime na experiência do sagrado.
A vida após a morte: Vimos que o sentimento religioso e a experiência da religião são inseparáveis da percepção de nossa mortalidade e da crença em nossa imortalidade. Toda religião, portanto, explica não só a origem da ordem do mundo natural, mas também a dos seres humanos e lhes ensina por que são mortais e o que podem ou devem esperar após a morte.
Na quase totalidade das religiões o mistério da morte é sempre explicado como consequência de alguma falta cometida contra algum deus ou de alguma ofensa que os homens fizeram aos deuses. No princípio os homens eram imortais e viviam na companhia dos deuses ou de Deus; a seguir, alguém ou alguns cometem uma transgressão imperdoável (um pecado) que leva à grande punição: a mortalidade para todos. No entanto, a imortalidade não está totalmente perdida, pois os deuses (ou Deus) concedem aos mortais uma vida após a morte, desde que, na vida presente, respeitem a vontade e a lei divinas.
Como é a imortalidade? Algumas religiões afirmam a imortalidade do corpo humano assegurando que este possui um duplo, feito de outra matéria, que permanece após a morte. Esse duplo, por ser feito de matéria sutil, pode penetrar no corpo de outros seres para se relacionar com os vivos. Outras religiões acreditam que o corpo é mortal, mas habitado por uma entidade - espírito, alma, sombra imaterial, sopro - que será imortal se os decretos divinos e os rituais tiverem sidi respeitados pelo fiel. No caso do judaísmo e do cristianismo, além disso, a imortalidade também depende de o gênero humano ter recebido o perdão divino pelo pecado dos ancestrais, Adão e Eva.
Por acreditarem firmemente numa outra vida, os adeptos das religiões realizam ritos funerários, encarregados de preparar e garantir a entrada do morto na outra vida. O ritual fúnebre limpa, purifica, adorna e perfuma o corpo morto e o protege com a sepultura. Pelo mesmo motivo, os cemitérios, na maioria das religiões e particularmente nas africanas, indígenas e ocidentais antigas, são lugares consagrados, campos-santos, nos quais somente alguns, e em certas condições, podiam penetrar.
Em algumas religiões, como nas do Egito e da Grécia antigos, a perfeita preservação do corpo morto, isto é, de sua imagem, era considerada essencial para que ele fosse reconhecido pelos deuses no reino dos mortos e recebesse a imortalidade. No caso dos egípcios, havia uma instituição social, a Casa dos Mortais, encarregada de embalsamar os cadáveres, preparando-os para a preservação na vida futura. No caso dos gregos, era preciso que o corpo morto permanecesse inviolado para que dele nascesse sua imagem viva e inteira, sua sombra, pois era esta que partia para o outro mundo e se tornava imortal.
Nas religiões do encantamento, como a grega antiga, as africanas e as indígenas das Américas, a morte é concebida de diversas maneiras, mas em todas elas o morto fica encantado, isto é, torna-se algo mágico. Em algumas, o morto deixa seu corpo para entrar num outro e permanecer no mundo sob formas variadas;ou seu espírito deixa seu corpo para permanecer no mundo, agitando os ventos, as águas, o fogo, ensinando os mais velhos, escondendo e achando coisas. Em outras, o morto tem sua imagem ou seu espírito levado ao mundo divino e ali desfruta das delícias de uma vida perenemente perfeita e bela; se, porém, suas faltas terrenas foram tantas e tais que não pôde ser perdoado, sua imagem ou espírito vagará eternamente pelas trevas, sem repouso e sem descanso.
O mesmo lhe acontecerá se os rituais fúnebres não puderem ser realizados ou se não tiveram sido realizados adequadamente. Esse perambular pelas trevas não existe nas religiões de reencarnação. Nestas, em lugar dessa punição, o espírito deverá ter tantas vidas e sob tantas formas quantas necessárias à sua purificação, até que possa participar da felicidade perene.
Nas religiões da salvação, como é o caso do judaísmo, do cristianismo e do islamismo, a felicidade perene não é apenas individual, mas também coletiva, São religiões em que a divindade promete perdoar a falta originária, enviando um salvador que, sacrificando-se pelos pelos humanos, garante-lhes a imortalidade e a reconciliação com Deus.
Como a falta ou queda originária atingiu a todos os humanos, o perdão divino e a redenção decorrem de uma decisão divina, que deverá atingir a todos os humanos, se acreditarem e respeitarem  a lei divina escrita nos textos sagrados e se guardarem a esperança na promessa de salvação que lhes foi feita por Deus.
Nesse tipo de religião, a obra de salvação é realizada por um enviado de Deus - daí vêm, do hebraico, messias, e, do grego, cristo. As religiões da salvação são messiânicas e coletivas. Um povo - povo de Deus - será salvo pela lei e pelo enviado divino, que vem realizar a esperança de felicidade perene no mundo, após sofrimentos profundos, por meio da regeneração, purificação e libertação dos seres humanos. A essa esperança é dado o nome milenarismo.
Críticas à religião: As primeiras críticas à religião feitas no pensamento ocidental vieram dos filósofos pre-socráticos, que criticaram o politeísmo e o antropomorfismo dos deuses. Em outras palavras, afirmaram que, do ponto de vista da razão, a pluralidade dos deuses é absurda, pois a essência da divindade é a plenitude infinita; portanto, não pode haver senão uma única potência divina.
Declararam também absurdo o antropomorfismo, que atribui aos deuses qualidades e propriedades humanas num grau superlativo. A razão, porém, sabe que eles devem ser supra-humanos, ou seja, as qualidades dos seres divinos não podem confundir-se com as da natureza humana. Essas críticas foram retomadas e sistematizadas por Platão, Aristóteles e pelos estoicos.
Outra crítica à religião foi feita pelo grego Epicuro e retomada pelo latino Lucrécio. A religião, dizem eles, é fabulação ilusória, nascida do medo da morte e da natureza. É superstição.
No século XVII, o filósofo Espinosa retoma essa crítica, mas, em vez de começar pela religião, começa pela superstição. Os humanos, diz ele, têm medo de que males lhes aconteçam e esperança de que bens lhes advenham. Movidos por essas duas paixões, não confiam em si mesmos nem nos conhecimentos racionais para evitar males e atrair bens. Passional ou irracionalmente, julgam que a origem dos males e dos bens encontram-se em forças caprichosas, como a sorte e a fortuna, e passam a acreditar nelas como poderes que os governam arbitrariamente. Essa crença é a superstição.
Para alimentá-la, criam a religião e esta, para conservar seu domínio sobre os homens, institui o poder teológico-político. Assim, sacerdotes e teólogos fazem crer que as leis políticas não foram instituídas pelos seres humanos, mas pela vontade de Deus ou dos deuses. Esta, por sua vez, teria sido revelada apenas a alguns, que, por isso, têm o direito divino de comandar os demais.
Nascida do medo supersticioso, a religião está, portanto, a serviço da tirania. Esta é tanto mais forte quanto mais os homens forem deixados na ignorância da verdadeira natureza de Deus, das verdades causas de todas as coisas e da origem humano do poder político e das leis.
A crítica filosófica à religião concentrou-se, pouco a pouco, na afirmação da diferença entre a crença numa divindade sobrenatural que impõe leis aos seres humanos e o conhecimento racional da essência de Deus. Isso levou, nos séculos XVII e XVIII, á ideia de uma religião não revelada, não sobrenatural, chamada deísmo.
Voltando-se contra a religião revelada e institucionalizada como poder eclesiástico e poder teológico-político, os filósofos afirmaram a existência de um Deus que é uma força ou uma energia inteligente, imanente à natureza, conhecido pela razão e contrário à superstição.
observamos, portanto, que as críticas à religião voltam-se contra dois de seus aspectos: o encantamento do mundo, considerando superstição, e o poder teológico-político institucional, considerado tirânico.  


quinta-feira, 21 de maio de 2015

A nova ciência e a manutenção da vida: Marcelo Gleiser.

Provocações filosóficas: Mário Sérgio Cortella.

Nietzsche: Ainda há tantas Auroras.

Humano, Demasiado Humano: Nietzsche.

Pensadores: Sócrates, Platão, Aristóteles e Rousseau.

A Vida Examinada: Sócrates.

Filosofia senso comum e ciência.

O mito e a religião.

Filosofia e religião parte 5.

Filosofia e religião parte 4.

Filosofia, educação e religião parte 3.

Filosofia, educação e religião parte 2.

Filosofia e religião parte 1.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Natureza e cultura

No pensamento ocidental, natureza possui vários sentidos. A natureza é:
. princípio de vida ou princípio ativo que anima e movimenta os seres. Nesse sentido, fala-se em "deixar agir a natureza" ou "seguir a natureza" para significar que se trata de uma força espontânea, capaz de gerar e de cuidar de todos os seres por ela gerados;
. essência própria de um ser. Nesse sentido, a natureza de alguma coisa é o conjunto de qualidades, propriedades e atributos que a definem necessariamente. Aqui, natural se opõe a acidental (o que pode ser ou deixar de ser) e ao que é adquirido por costume ou pela relação com as circunstâncias;
. organização universal e necessária dos seres segundo uma ordem regida por leis universais e necessárias. Nesse sentido, a natureza se caracteriza pelo ordenamento dos seres, pela regularidade dos fenômenos ou dos fatos, pela frequência, constância e repetição de causalidade entre as coisas;
. tudo o que existe no Universo sem a intervenção da vontade e da ação humanas. Assim, natureza ou natural opõe-se ao que é produzido pelos homens, portanto, opõe-se à técnica e à tecnologia (por esse motivo, opomos natural e técnico);
o conjunto de tudo quanto existe e é percebido pelos humanos como o meio ambiente no qual vivem. A natureza aqui, significa tanto o conjunto das condições físicas em que vivemos quanto as coisas que contemplamos com emoção (a paisagem, o mar, o céu, as estrelas, os terremotos, os eclipses, etc.). A natureza é o mundo visível como meio ambiente e como aquilo que existe fora de nós.
Para as ciências contemporâneas, a natureza não é apenas a realidade externa, mas um objeto de conhecimento elaborado pelas operações científicas para explicar essa realidade.
Cultura e trabalho
Para vários filósofos e historiadores, a cultura surge quando os homens produzem as primeiras transformações na natureza pela ação do trabalho. Com o trabalho, os seres humanos produzem objetos inexistentes na natureza (vestuário, habitações, utensílios, instrumentos) e organizam-se socialmente para realizá-lo, dividindo as tarefas. Para aumentar os recursos produzidos, instituem a família e as relações de parentesco, as aldeias e vilas. Para protegê-las, inventam as armas e a guerra. Para conseguir condições sempre favoráveis para o trabalho e para a melhoria do que produzem, invocam e adoram forças divinas, instituindo a religião. Os vários agrupamentos humanos, nascidos do trabalho e dos sistemas de parentesco, trocam entre si produtos de seu trabalho, inventando o comércio. As desigualdades surgem quando uma parte da comunidade toma para si, como propriedade privada, terras, animais, águas: começa a divisão social da qual surgirão as classes sociais e os conflitos e, destes, a instituição do poder.
A cultura como ordem simbólica
A cultura é instituída no momento em que os humanos estabelecem para si mesmos regras e normas de conduta que asseguram a existência e a conservação da comunidade e que, por isso, devem ser obedecidas sob pena de punição (que pode ser desde um castigo ou a expulsão até a morte). É assim, por exemplo, que muitos antropólogos declaram que a cultura surge no momento em que os humanos dão um sentido novo à sexualidade, determinando quais as mulheres permitidas e quais as proibidas para um grupo, é a instituição da lei da proibição do incesto.
O que é a lei humana? Diferentemente da lei natural, a lei humana é um mandamento social que organiza toda a vida dos indivíduos e da comunidade, tanto por determinar o modo de estabelecimento dos costumes e de sua transmissão de geração a geração como por presidir as ações que criam as instituições sociais (religião, família, guerra e paz, formas do trabalho, distribuição das tarefas, formas de poder, etc.). A lei não é uma simples proibição para certas coisas e obrigação para outras, mas é a afirmação de que os humanos são capazes de criar uma ordem de existência que não é simplesmente natural (física, biológica). Essa ordem é a ordem simbólica.
A ordem simbólica consiste na capacidade humana de dar às coisas um sentido que está além de sua presença material, isto é, a capacidade de atribuir significações e valores às coisas e valores às coisas e aos homens. É essa dimensão simbólica que se institui com a proibição do incesto, por exemplo.
Graças à linguagem e ao trabalho, os seres humanos tomam consciência do tempo e das diferenças temporais (passado, presente, futuro); tomam consciência da morte e lhe dão um sentido, organizam o espaço, humanizando-o (dando sentido ao próximo e ao distante, ao grande e ao pequeno, ao visível e ao invisível). A diferenciação temporal e espacial permite que os seres humanos se relacionem com o ausente, distinguindo não só o presente do passado e do futuro e o próximo do distante, mas também separando o sagrado do profano, os deuses dos homens.
Na realidade, não existe a cultura, no singular, mas culturas, no plural, pois os sistemas de proibição e permissão, as instituições sociais, religiosas e políticas, os valores, as crenças, os comportamentos variam de formação social e podem variar numa mesma sociedade no decorrer do tempo.
A filosofia é uma invenção humana e, portanto, uma atividade cultural e histórica.

quinta-feira, 14 de maio de 2015

O nosso corpo

O que é nosso corpo? Qual a sua essência? A física dirá que é um agregado de átomos, uma massa e energia que funciona de acordo com as leis gerais da natureza. A Química dirá que é feito de moléculas de água, oxigênio, carbono, de enzimas e proteínas, funcionando como qualquer outro corpo químico. A bilogia dirá que é um organismo vivo, um indivíduo membro de uma espécie (animal, mamífero, vertebrado, bípede), capaz de adaptar-se ao meio ambiente por operações e funções internas, dotado de um código genético hereditário, que se reproduz sexualmente. A psicologia dirá que é um feixe de carne, músculos, ossos, que formam aparelhos receptores de estímulos externos e internos e aparelhos emissores de respostas internas e externas a tais estímulos, capaz de ter comportamentos observáveis.
Todas essas respostas dizem que nosso corpo é uma coisa entre as coisas, uma máquina receptiva e ativa que pode ser explicada por relações de causa e efeito; suas operações são observáveis direta ou indiretamente, podendo ser examinado em seus mínimos detalhes nos laboratórios, classificado e conhecido. Nosso corpo, como qualquer coisa, é um objeto de conhecimento.
Porém, será isso o corpo que é nosso? 
Meu corpo é um ser visível no meio dos outros seres visíveis, mas que tem a peculiaridade de ser um visível vidente: vejo, além de ser visto. Não só isso. Posso me ver, sou visível para mim mesmo. E posso me ver vendo.
Meu corpo é um ser táctil como os outros corpos, podendo ser tocado. Mas também tem o poder de tocar, é tocante; e é capaz de tocar-se, como quando minha mão direita toca a esquerda e já não sabemos quem toca e quem é tocado.
Meu corpo é sonoro como os outros corpos, como os cristais e os metais; pode ser ouvido. Mas tem o poder de ouvir. Mais do que isso, pode fazer-se ouvir r pode ouvir-se quando emite sons. Do fundo da garganta passando pela língua e pelos dentes, com os movimentos de meus lábios transformo a sonoridade em sentido, dizendo palavras. Ouço-me falando e ouço quem me fala. Sou sonoro para mim mesmo.
Meu corpo estende a mão e toca outra mão em outro corpo, vê um olhar, percebe uma fisionomia, escuta outra voz; sei que diante de mim está um corpo que é meu outro, um outro humano habitado por consciência e eu o sei porque me fala e, como eu, seu corpo produz palavras, sentidos.
Visível-vidente, táctil, tocante, sonoro-ouvinte/falante, meu corpo se vê vendo, se toca tocando, se escuta escutando e falando. Meu corpo não é coisa, não é máquina, não é feixe de ossos, músculos e sangue, não é uma rede de causas e efeitos, não é um receptáculo para uma alma ou para uma consciência: é meu modo fundamental de ser e de estar no mundo, de me relacionar com ele e de ele se relacionar comigo. Meu corpo é um sensível que sente e se sente, que se sabe sentir e se sentindo. É uma interioridade exteriorizada e uma exterioridade interiorizada. É esse o ser ou a essência do meu corpo. Meu corpo tem, como todos os entes, uma dimensão metafísica ou ontológica.

A origem da linguagem

Durante muito tempo a filosofia preocupou-se em definir a origem e as causas da linguagem. Uma primeira divergência sobre o assunto surgiu na Grécia: a linguagem é natural aos homens ou é uma convenção social? Se a linguagem for natural, as palavras possuem um sentido próprio e necessário; se for convencional, são decisões consensuais da sociedade e, nesse caso, são arbitrárias.
Esse discurso levou, séculos mais tarde, à seguinte conclusão: a linguagem como capacidade de expressão dos seres humanos é natural, isto é, os humanos nascem com uma aparelhagem física, anatômica e fisiológica que lhes permite expressarem-se pela palavra; no entanto, as línguas são convencionais, isto é, surgem de condições históricas, geográficas, econômicas e políticas determinadas, são fatos culturais.
Uma vez constituída uma língua, ela se torna uma estrutura ou um sistema dotado de necessidade interna e passa a funcionar como se fosse algo natural, com leis e princípios próprios, independentes dos sujeitos que a empregam.
Perguntar pela origem da linguagem levou a quatro tipos de respostas:
1. a linguagem nasce por imitação: os humanos imitam, pela voz, os sons da natureza. A origem da linguagem seria, portanto, onomatopeia;
2. a linguagem nasce por imitação dos gestos: nasce como uma espécie de pantomima ou encenação, na qual o gesto indica um sentido. Pouco a pouco o gesto passou a se acompanhar de sons, e estes foram se tornando palavras;
3. a linguagem nasce da necessidade: a fome, a sede, a necessidade de se abrigar e se proteger, a necessidade de se reunir em grupo para se defender das intempéries, dos animais e de outros homens mais fortes levaram à criação de palavras. Com isso, formou-se um vocabulário elementar e rudimentar que, gradativamente, tornou-se mais complexo e transformou-se numa língua;
4. a linguagem nasce das emoções, particularmente do grito (medo, surpresa ou alegria), do choro (dor, medo, compaixão) e do riso (prazer, bem-estar, felicidade). Citando Rousseau: "Não é a fome ou a sede, mas o amor ou o ódio, a piedade, a cólera, que aos primeiros homens lhes arrancaram as primeiras vozes... Eis por que as primeiras línguas foram cantantes e apaixonadas antes de serem simples e metódicas".
Assim, para Rousseau, a linguagem, por nascer das paixões, foi antes linguagem figurada e por isso surgiu como poesia e canto, tornando-se prosa muito depois; e as vogais nasceram antes das consoantes. Assim como a pintura nasceu antes da escrita, também os homens primeiro cantaram seus sentimentos e só muito depois exprimiram seus pensamentos.
Essas teorias não são excludentes. É muito possível que a linguagem tenha nascido de todas essas fontes ou modos de expressão, e os estudos de psicologia genética mostram que uma criança se vale de todos esses meios para começar a se exprimir.



Bacon e Descartes e o conhecimento verdadeiro

Se os gregos indagaram: "Como o erro é possível?", os modernos perguntaram: "Como a verdade é possível?", pois buscavam compreender e explicar como nossas ideias correspondem ao que se passa verdadeiramente na realidade. Apesar dessas diferenças, os modernos retomaram o modo de operar proposto por Sócrates, Platão e Aristóteles, que é o de começar pelo exame das opiniões contrárias e ilusórias para ultrapassá-las em direção à verdade.
Antes de abordar o conhecimento verdadeiro, Bacon e Descartes examinaram exaustivamente as causas e as formas do erro, inaugurando um estilo filosófico que permanecerá na filosofia: a análise das causas e formas dos nossos preconceitos.
Bacon elaborou uma teoria conhecida como crítica dos ídolos. De acordo com ela, existem quatro tipos de ídolos ou de imagens que formam opiniões cristalizadas que impedem o conhecimento da verdade:
1. ídolos da caverna (uma referência ao Mito da Caverna): as opiniões que se formam em nós por erros e defeitos dos órgãos dos sentidos. São os mais fáceis de serem corrigidos pelo nosso intelecto;
2. ídolos do fórum (o fórum era o lugar das discussões e dos debates públicos na Roma antiga): são as opiniões que se formam em nós como consequência da linguagem e de nossas relações como os outros. São difíceis de serem vencidos, mas o intelecto tem poder sobre eles;
3. ídolos do teatro (o teatro é o lugar em que ficamos passivos, onde somos apenas espectadores e receptores de mensagens): são as opiniões formadas em nós em decorrência dos poderes das autoridades, que nos impõem seus pontos de vista e os transformam em leis inquestionáveis. Só podem ser desfeitos se houver uma mudança social e política;
4. ídolos da tribo (a tribo é um agrupamento humano em que todos possuem a mesma origem, o mesmo destino, as mesmas características e os mesmos comportamentos): são as opiniões que se formam em nós em decorrência da natureza humana. São próprios da espécie humana e só podem ser vencidos se houver uma reforma da própria natureza humana.
A demolição dos ídolos é, portanto, uma reforma do intelecto, dos conhecimentos e da sociedade. Para a reforma dos dois primeiros, Bacon propõe um método, definido como o modo seguro de aplicar o pensamento lógico aos dados oferecidos pelo conhecimento sensível. O método deve tornar possível:
. organizar e controlar esses dados, graças a procedimentos adequados de observação e de experimentação;
. organizar e controlar os resultados observacionais e experimentais para chegar a conhecimentos novos ou à formulação de teorias verdadeiras;
. desenvolver procedimentos adequados à aplicação prática dos resultados teóricos, pois para ele o homem é "ministro da natureza" e, se souber conhecê-la (obedecer-lhe, diz Bacon), poderá comandá-la. O método, afirma Bacon, é o modo seguro e certo de "aplicar a razão à experiência", isto é, de aplicar o pensamento verdadeiro aos dados oferecidos pelo conhecimento sensível.
Bacon acreditava que o avanço dos conhecimentos e das técnicas, as mudanças sociais e políticas e o desenvolvimento das ciências e da filosofia propiciariam uma grande reforma do conhecimento humano, que seria também uma grande reforma da vida humana.
Por sua vez, Descartes localizava a origem do erro em duas atitudes, que chamou atitudes infantis ou preconceitos de infância:
1. a prevenção, que é a facilidade com que nosso espírito se deixa levar pelas opiniões e ideias alheias, sem se preocupar em verificar se elas são ou não verdadeiras. São as opiniões que se cristalizam em nós na forma de preconceitos e que escravizam nosso pensamento, impedindo-nos de pensar e de investigar;
2. a precipitação, que é a facilidade e a velocidade com que nossa vontade nos faz emitir juízos sobre as coisas antes de verificarmos se nossas ideias são verdadeiras ou não. São opiniões que emitimos em consequência de nossa vontade ser mais forte  e poderosa que nosso intelecto.
Essas duas atitudes indicam que, para Descartes, o erro situa-se no conhecimento sensível (sensação, percepção, imaginação, memória e linguagem), de maneira que o conhecimento verdadeiro é puramente intelectual e parte de ideias inatas (isto é, verdades que existem em nossa alma desde nosso nascimento) ou de observações inteiramente controladas pelo pensamento.
Tal como Bacon, Descartes está convencido de que é possível vencer os defeitos no conhecimento por meio de uma reforma do entendimento e das ciências, diferentemente de Bacon, porém, Descartes não vê a necessidade de mudanças sociais e políticas.
Com Descartes tem início propriamente a filosofia moderna, pois é ele o primeiro a propor a figura do sujeito do conhecimento verdadeiro, quando a primeira verdade que escapa da dúvida é pronunciada: "penso, logo, existo".
A reforma proposta por Descartes deve ser feita pelo sujeito do conhecimento quando este compreende a necessidade de encontrar fundamentos seguros para o saber e, para tanto, instituir um método.
Os objetivos principais do método são:
. assegurar a reforma do intelecto para que este siga o caminho seguro da verdade (afastar a prevenção e a precipitação);
. oferecer procedimentos pelos quais a razão possa controlar-se a si mesma durante o processo de conhecimento, sabendo que caminho percorrer;
propiciar a ampliação ou o aumento dos conhecimentos graças a procedimentos seguros que permitam passar do já conhecido ao desconhecido;
oferecer os meios para que os novos conhecimentos possam ser aplicados, pois o saber deve "tornar o homem senhor e possuidor da natureza", no dizer de Descartes.
Método: regras certas, fáceis e amplas
Por que o método se torna necessário? Feitas as críticas à autoridade das escolas e dos livros, da tradição e dos preconceitos, o sujeito do conhecimento descobre-se como uma consciência que parece não poder contar com o auxílio do mundo para guiá-lo. Desconfia dos conhecimentos sensíveis e dos conhecimentos herdados. Está só, conta apenas com seu próprio pensamento. Sua solidão torna indispensável um método que possa guiar o pensamento em direção aos conhecimentos verdadeiros, ao passo que os distingue dos falsos. Eis por que Descartes escreve Discurso do método e regras para a direção do espírito.
O filósofo define o método como um conjunto de regras cujas características principais são três:
1. certas (o método dá segurança ao pensamento);
2. fáceis (o método evita complicações e esforços inúteis);
3. amplas (o método deve permitir que se alcancem todos os conhecimentos possíveis para o entendimento humano).
Descartes elabora quatro grandes regras do método:
1. regra da evidência: só admitir como verdadeiro um conhecimento evidente, isto é, no qual e sobre o qual não caiba a menor dúvida. Para isso, Descartes criou um procedimento, a dúvida metódica;
2. regra da divisão> para conhecermos realidades complexas precisamos dividir as dificuldades e os problemas e em suas parcelas mais simples, examinando cada uma delas em conformidade com a regra da evidência;
3. regra da ordem: os pensamentos devem ser ordenados em séries que vão dos mais simples aos mais complexos, dos mais fáceis aos mais difíceis, pois a ordem consiste em distribuir os conhecimentos de maneira que passemos do conhecido ao desconhecido;
4. regra da enumeração: a cada conhecimento novo obtido, deve-se fazer a revisão completa dos passos dados, dos resultados parciais e dos encadeamentos que permitiram chegar ao novo conhecimento. 
  

terça-feira, 12 de maio de 2015

Inteligência e pensamento

A inteligência colhe, recolhe e reúne os dados oferecidos pela percepção, imaginação, memória e linguagem, formando redes de significações com as quais organizamos, ordenamos e damos sentido a nosso mundo e nossa vida. O pensamento, porém, vai além do trabalho da inteligência: abstrai (ou seja, separa) os dados das condições imediatas de nossa experiência e os elabora na forma de conceitos, ideias e juízos, estabelecendo articulações internas e necessárias entre eles pelo raciocínio (indução e dedução), pela análise e pela síntese. Formula teorias, procura prová-las e verificá-las, pois está voltado para a verdade do conhecimento.
Um conceito ou uma ideia é uma rede de significações que nos oferece:
. o sentido interno e essencial daquilo a que se refere;
. os nexos causais ou as relações necessárias entre seus elementos, de sorte que por eles conhecemos a origem, os princípios, as consequências, as causas e os efeitos daquilo a que se refere.
O conceito ou ideia nos oferece a essência-significação necessária de alguma coisa, sua origem ou causa, suas consequências, ou seus efeitos, seu modo de ser e de agir.
O pensamento expressa os nexos ou ligações dessas redes de significações por meio dos juízos, pelos quais estabelecemos os elos internos e necessários entre um ser e suas qualidades, propriedades e atributos, assim como entre o ser e aqueles predicados que lhe são acidentais e que podem ser retirados sem que isso afete seu sentido e sua realidade.
Um conjunto de juízos constitui uma teoria quando:
. estabelecem-se com clareza um campo de objetos e os procedimentos para conhecê-los e enunciá-los;
. organizam-se e ordenam-se os conceitos;
. articulam-se e demonstram-se os juízos, verificando seu acordo com regras e princípios de racionalidade e demonstração.
Teoria é explicação, descrição e interpretação geral das causas, formas, modalidades  e relações de um campo de objetos, conhecidos graças a procedimentos específicos, próprios da natureza dos objetos investigados.
O pensamento elabora teorias, ou seja, uma explicação ou interpretação intelectual de um conjunto de fenômenos e significações. Por isso falamos em teoria da relatividade, teoria genética, teoria psicanalítica, etc.
Uma teoria pode ou não nascer diretamente de uma prática e ter ou não uma aplicação prática direta, mas não é a prática que permite determinar a verdade ou falsidade teórica, e sim critérios internos à própria teoria. A prática orienta o trabalho teórico e verifica suas conclusões, mas não determina sua verdade ou falsidade.
O pensamento propõe e elabora teorias e cria métodos.
O método como regulador do pensamento: Usar um método é seguir regular e ordenadamente um caminho por meio do qual um objetivo é alcançado. No caso do conhecimento, é o caminho ordenado que o pensamento segue por meio de um conjunto de regras e procedimentos racionais, com três finalidades:
. conduzir à descoberta de uma verdade até então desconhecida;
. permitir a demonstração e a prova de uma verdade já conhecida;
. permitir a verificação de conhecimento para averiguar se são ou não verdadeiros.
O método é, portanto, um instrumento racional para adquirir, demonstrar ou verificar conhecimentos. Nas várias formulações que recebeu no correr da história da filosofia e das ciências, sempre teve o papel de um regulador do pensamento, isto é, de verificador e avaliador das ideias e teorias: guia o trabalho intelectual e avalia os resultados obtidos.
Desde Aristóteles, a filosofia considera que, ao lado de um método geral que todo e qualquer conhecimento deve seguir, outros métodos particulares são necessários, adequados à especificidade do objeto a ser conhecido. Dessa maneira, são diferentes entre si os métodos da geometria e da física, da biologia e da sociologia, e assim por diante.
É interessante notar, todavia, que, em certos períodos da história da filosofia e das ciências, chegou-se a pensar num método único para todos os campos do conhecimento. Assim, Galileu julgou que o método matemático deveria ser usado em todos os conhecimentos da natureza, pois dizia ele, "a natureza é um livro escrito em caracteres matemáticos".
Descartes, indo mais longe do que Galileu, julgou que um só método deveria ser empregado pela filosofia e por todas as ciências, uma mathesis universalis, ou o conhecimento da ordem necessária das ideias, válida para todos os objetos de conhecimento. Conhecer seria ordenar e encadear em nexos contínuos as ideias referentes a um objeto, e tal procedimento deveria ser o mesmo em todos os conhecimentos porque esse é o modo próprio do pensamento, seja qual for o objeto a ser conhecido.
Os filósofos e cientistas do fim do século XIX também afirmavam que um único método deveria ser seguido.Entusiasmados com o desenvolvimento da física, julgaram que todos os campos do saber deveriam empregar o método usado pela "ciência da natureza", mesmo quando o objeto fosse o homem. Agora, não era tanto o conceito de ordenamento interno das ideias que levava à defesa de um único método de conhecimento, mas o da causalidade ou da explicação causal de todos os fatos, fossem eles naturais, fossem humanos.
Cada campo com seu método: No século XX, porém, sobretudo com a fenomenologia de Husserl e com  a corrente do pensamento conhecida como estruturalismo, passou-se a considerar que cada campo do conhecimento deve ter seu método próprio. Este é determinado pela natureza do objeto, pela forma como o sujeito do conhecimento pode aproximar-se desse objeto e pelo conceito de verdade que cada esfera do conhecimento define para si própria.
Assim, por exemplo, considera-se o método matemático (dedutivo) próprio para objetos que existem apenas idealmente e que são construídos inteiramente pelo nosso pensamento. Ao contrário, o método experimental (indutivo) é próprio das ciências naturais, que observam seus objetos e realizam experimentos.
Já as ciências humanas têm métodos de compreensão e de interpretação do sentido das ações, das práticas, dos comportamentos, das instituições sociais e políticas, dos sentimentos, dos desejos, das transformações históricas, pois o homem, objeto dessas ciências, é um ser histórico-cultural que produz as instituições e o sentido delas. Tal é o que precisa ser conhecido.
No caso das ciências exatas (as matemáticas), o método dedutivo também chamado axiomático, porque o conhecimento parte de um conjunto de termos primitivos e de axiomas indemonstráveis que baseiam a construção e demonstração nos objetos.
No caso das ciências naturais, o método indutivo também é chamado experimental e hipotético. Experimental porque se baseia em observações e experimentos; hipotético porque os cientistas partem de hipóteses sobre os objetos que guiam os experimentos e a avaliação dos resultados.
No caso das ciências humanas, o método é chamado compreensivo-interpretativo, porque seu objeto são as significações ou os sentidos dos comportamentos, práticas e instituições produzidas pelos seres humanos.
Atualmente, quatro traços são comuns aos diferentes métodos filosóficos:
1. o método é reflexivo - parte da autoanálise ou do autoconhecimento do pensamento;
2. é crítico - investiga os fundamentos e as condições da possibilidade do conhecimento verdadeiro, da ação ética, da criação artística e da atividade política;
3. é descritivo - descreve as estruturas internas ou essências de cada campo de objetos do conhecimento e das formas de ação humana;
4. é interpretativo - busca as formas da linguagem e as significações ou os sentidos dos objetos, dos fatos, das práticas e das instituições, suas origens e transformações.

Sensação e percepção

O conhecimento empírico ou sensível também é chamado experiência sensível, e suas formas principais são a sensação e a percepção.
A sensação é o que nos dá as qualidades exteriores e interiores dos objetos e os efeitos internos dessas qualidades sobre nós. Na sensação sentimos o quente e o frio, provamos o doce e o amargo, tocamos o liso e o rugoso, vemos o roxo e o verde, ouvimos o barulho e o silêncio. Sentimos também qualidades internas, que se passam em nosso corpo ou em nossa mente pelo contato com as coisas sensíveis: prazer, dor, desagrado.
Sentir é algo ambíguo, pois o sensível é, ao mesmo tempo, a qualidade que está no objeto externo e o sentimento que nosso corpo possui das qualidades sentidas. Por isso a tradição costuma dizer que a sensação é uma reação corporal imediata a um estímulo externo, sem que seja possível distinguir o estímulo exterior do sentimento interior. 
Ninguém diz que sente o quente, vê o azul e engole o amargo, dizemos que a água está quente, que céu é azul e que o alimento está amargo. Além disso, quando, por exemplo, percebemos a água, não percebemos apenas sua temperatura, mas também sua transparência, sua vulnerabilidade, isto é, várias de suas características. Mesmo se fizermos referência a apenas uma qualidade, outras sensações estarão presentes. Por isso se diz que, na realidade, não temos uma sensação isolada de outras, e sim sensações como reunião ou síntese de várias sensações.
Empirismo e intelectualismo: Duas grandes concepções sobre a sensação e a percepção fazem parte da tradição filosófica: a empirista e a intelectualista.
Para os empiristas, a sensação e a percepção são causadas pela relação entre estímulos externos e o cérebro. Depois que esses estímulos agem sobre nossos sentidos e sobre o nosso sistema nervoso, nosso cérebro envia uma resposta que percorre nosso sistema nervoso até chegar aos nossos sentidos na forma de uma sensação (uma cor,um sabor, um odor) ou de uma associação de sensações numa percepção (vejo um objeto vermelho, sinto o sabor de uma carne, sinto o cheiro da rosa, etc.).
Para um empirista, a sensação é pontual: um ponto do objeto externo toca um de meus órgãos dos sentidos e faz um percurso no interior do meu corpo, indo ao cérebro e voltando às extremidades sensoriais. Cada sensação é independente das outras, cabendo à percepção unificá-las e organizá-las numa síntese.
A causa do conhecimento sensível é a coisa externa, de modo que a sensação e a percepção são efeitos passivos de uma atividade dos corpos exteriores sobre o nosso corpo. O conhecimento é obtido por soma e associação das sensações na percepção, num processo que depende da frequência, da repetição e da sucessão dos estímulos externos e de nossos hábitos.
Para os intelectualistas, a sensação e a percepção dependem do sujeito do conhecimento, e a coisa exterior é apenas a ocasião para que tenhamos a sensação ou a percepção. Nesse caso, o sujeito é ativo e a coisa externa é passiva, ou seja, sentir e perceber são fenômenos que dependem da capacidade do sujeito para decompor um objeto em suas qualidades simples (a sensação) e recompô-lo, dando-lhe organização e significação (a percepção). A passagem da sensação para a percepção é, aqui, realizada pelo intelecto do sujeito do conhecimento.
Psicologia da forma e Fenomenologia: No século XX, porém, a filosofia alterou bastante essas duas tradições e as superou numa nova concepção do conhecimento sensível. As mudanças foram trazidas pela fenomenologia de Edmund Husserl pela psicologia da forma ou teoria da gestalt.
Ambas mostraram:
.contra o empirismo: que a sensação não é uma resposta físico-fisiológica pontual, a um estímulo externo também pontual;
.contra o intelectualismo: que a percepção não é uma atividade de síntese das sensações realizada pelo pensamento;
.contra o empirismo e o intelectualismo: que não há diferença entre sensação e percepção.
Empiristas e intelectualistas, apesar de suas diferenças, concordavam que a sensação era uma relação de causa e efeito entre pontos das coisas e pontos do nosso corpo. As coisas seriam como mosaicos de qualidades isoladas, e nosso aparelho sensorial também seria um mosaico de receptores isolados. Por isso a percepção era considerada a atividade que "juntava" as partes numa síntese que seria o objeto percebido.
Fenomenologia e gestalt, porém, mostram que não há diferença entre sensação e percepção porque nunca temos sensações parciais, pontuais ou elementares, que depois o espírito organizaria como percepção de um único objeto. Sentimos e percebemos formas, totalidades estruturadas dotadas de sentido ou de significação.
Assim, por exemplo, ter a sensação e a percepção de um cavalo é sentir/perceber de uma só vez sua cor, suas partes, sua face, seu lombo, sua crina e seu rabo, seu porte, seu cheiro, seus ruídos, seus movimentos. O cavalo-percebido não é um feixe de qualidades isoladas que enviam estímulos aos meus órgãos dos sentidos (como suporia o empirista) nem um objeto esperando que meu pensamento diga às minhas sensações "Esta coisa é um cavalo" (como suporia o intelectualista). O cavalo-percebido não é um mosaico de estímulos (empirismo) nem uma ideia (intelectualismo), mas é, exatamente, uma cavalo-percebido.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Karl Marx e os conceitos de ideologia e modo de produção.

Modos de produção: A variação das condições materiais de uma sociedade constitui a história dessa sociedade, e Marx as designou modos de produção. Ele os define com base em três fatores principais: a forma da propriedade ou os meios de produção;a divisão social das classes e as relações sociais de produção.
A história é a mudança ou transformação de um modo de produção para outro. Tal mudança não se realiza por acaso nem por vontade livre dos seres humanos, mas de acordo com as condições econômicas, sociais e culturais já estabelecidas, que podem ser alteradas graças à práxis humana diante de tais condições. Essa constatação levou Marx a afirmar que "os homens fazem a história, mas o fazem em condições determinadas", isto é, que não foram escolhidas por eles. Também por isso ele disse: "os homens fazem a história, mas não sabem que a fazem".
Estamos aqui, diante de uma situação coletiva muito parecida com a que encontramos em nossa vida psíquica individual. Assim como julgamos que nossa consciência sabe e pode tudo, faz o que pensa e quer, mas na realidade, está determinada pelo inconsciente e ignora isso, também na existência social os seres humanos julgam que sabem o que é a sociedade. Dizem que Deus ou a natureza a criaram, instituíram a política e a história, e que os homens são seus instrumentos; ou, então, acreditam que fazem o que fazem e pensam o que pensam porque são livres e têm poder para mudar o curso das coisas como e quando quiserem.
Por exemplo, quando alguém diz que uma pessoa é pobre porque quer, porque é preguiçosa, ou perdulária, ou ignorante, está imaginando que somos o que somos somente por nossa vontade, como se a organização e a estrutura da sociedade, da economia, da política não tivesse nenhum peso sobre nossa vida.
A mesma coisa acontece quando alguém diz ser pobre "pela vontade de Deus", e não por causa das condições concretas em que vive. Ou quando faz uma afirmação racista, segundo a qual "a natureza fez alguns superiores e outros inferiores".
A alienação social é o desconhecimento das condições histórico-sociais em que vivemos e que são produzidas pela ação humana sob o peso de outras condições históricas anteriores e determinadas. Há uma dupla alienação: ao mesmo tempo que não se reconhecem como agentes e autores da vida social com suas instituições, os seres humanos julgam-se indivíduos plenamente livres.
No primeiro caso, não percebem que instituem a sociedade; no segundo caso, ignoram que a sociedade instituída determina seus pensamentos e ações.
A partir do fenômeno da alienação, podemos compreender o fenômeno da ideologia.

A ideologia: A alienação social se exprime numa "teoria" do conhecimento espontânea, formando o senso comum da sociedade. Por seu intermédio, são imaginadas explicações e justificativas para a realidade tal como é diretamente percebida e vivida.
Um exemplo desse senso comum aparece no caso das "explicações" da pobreza. Esse senso comum social é o resultado de uma elaboração intelectual sobre a realidade, feita pelos pensadores ou intelectuais, que descrevem e explicam o mundo pelo ponto de vista da classe dominante de sua sociedade. Essa elaboração intelectual incorporada pelo senso comum social é a ideologia. Por meio dela, o ponto de vista, as opiniões e as ideias de uma das classes sociais, a dominante e dirigente, tornam-se o ponto de vista e a opinião de todas as classes e de toda a sociedade.
A função principal da ideologia é ocultar e dissimular as divisões sociais e políticas, dando-lhes a aparência de indivisão social e de diferenças naturais entre os seres humanos.
Apesar da divisão social das classes, somos levados a crer que somos todos iguais porque participamos da ideia de "humanidade", ou da ideia de "nação" e "pátria", ou da ideia de "raça", etc. Somos levados a crer que as desigualdades sociais, econômicas e políticas não são produzidas pela divisão social das classes, mas por diferenças individuais dos talentos e das capacidade, da inteligência, da força de vontade, entre outros fatores.
A produção ideológica da ilusão social tem como finalidade fazer com que todas as classes sociais aceitem as condições em que vivem, julgando-as naturais, normais, corretas, justas, sem levar em conta que há uma contradição profunda entre as condições reais em que vivemos e as ideias.
Por exemplo, a ideologia afirma que somos todos cidadãos e, portanto, temos todos os mesmos direitos sociais, econômicos, políticos e culturais. No entanto, isso não acontece de fato. A maioria, porém, acredita que o fato de ser eleitor, pagar as dívidas e contribuir com os impostos já nos faz cidadãos, sem considerar ascondições concretas que fazem alguns seres mas "cidadãos" do que outros.

sexta-feira, 8 de maio de 2015

Como Hegel pensa a razão (espírito absoluto)

No século XIX, o filósofo alemão Hegel ofereceu outra solução para o problema do inatismo e do empirismo. A todas as concepções filosóficas que o antecederam, ele endereçou uma crítica de não terem compreendido algo fundamental: a razão é histórica.
De fato, a filosofia, preocupada em garantir a diferença entre mera opinião e a verdade, considerou que as ideias só seriam racionais e verdadeiras se fossem intemporais, perenes, as mesmas em todo tempo e em todo lugar. Uma verdade que não respeitasse essas condições seria mera opinião, seria enganosa, não seria verdade. A razão, sendo a fonte e a condição da verdade, teria também de ser intemporal
É essa intemporalidade atribuída à razão que Hegel criticou em toda a filosofia anterior. Ao afirmar que a razão é histórica, ele não está, de modo algum, dizendo que a razão é algo relativo, que vale hoje e não vale amanhã, que serve aqui e não serve ali, que cada época não alcança verdades universais. O que Hegel está dizendo é que a mudança, a transformação da razão e de seus conteúdos é obra racional da própria razão. A razão não é uma vítima do tempo, que lhe roubaria a verdade, a universalidade, a necessidade. A razão não está na história; ela é a história. A razão não está no tempo; ela é o tempo. Ela dá sentido ao tempo.
Hegel também fez uma crítica aos inatistas e aos empiristas muito semelhante à que Kant fizera.
Kant estava certo quando disse que os inatistas e empiristas se enganaram por excesso de objetivismo, isto é, por julgarem que o conhecimento racional dependeria inteiramente dos objetos do conhecimento, seja devido a experiência, seja devido à capacidade das ideias para reproduzir a realidade em si das coisas.
Mas Kant também se enganou porque não foi capaz de compreender que a razão é sujeito e objeto. Ou seja, mesmo afirmando que a razão não conhece a realidade em si, mas  apenas a realidade fenomênica, Kant ainda admitia a existência de uma realidade, isto é, que o real é a obra histórica da razão.
A razão, diz Hegel, não é exclusivamente razão objetiva (para a qual a verdade está nos objetos) nem exclusivamente subjetiva (para a qual a verdade está no sujeito), mas ela é a unidade necessária do objetivo e do subjetivo. Ela é o conhecimento da harmonia entre as coisas e as ideias, entre o objeto e o sujeito, entre a verdade objetiva e a verdade subjetiva.
O que é, afinal, a razão para Hegel? Para ele, a razão é:
1. o conjunto das leis do pensamento, isto é, os princípios, os procedimentos do raciocínio, as formas e as estruturas necessárias para pensar as categorias, as ideias - é razão subjetiva;
2. a ordem, a organização, o encadeamento e as relações das próprias coisas, isto é, a realidade objetiva e racional - é razão objetiva;
3. a relação interna e necessária entre as leis do pensamento e as leis do real. Ela é a unidade da razão subjetiva e da razão objetiva. A essa unidade, Hegel dá o nome espírito absoluto.

O ser humano produz a si mesmo, mas também se perde de si mesmo (Karl Marx)

No século XIX, o filósofo alemão Karl Marx integrou as visões de natureza humana e condição humana. Cada uma delas, se tomada isoladamente, não permite conhecer melhor o ser humano.
A obra de Marx nos permite dar um novo sentido a essas expressões. Por natureza humana, entende-se aquilo de propriamente humano que é identificável em cada indivíduo. Leva-se em consideração, assim, os aspectos biológicos, anatômicos, fisiológicos e psicológicos e afirma-se que eles se expressam no aspecto material da vida cotidiana. Distingue-se entre uma "natureza humana geral", que são os aspectos invariáveis em toda a humanidade, e uma natureza humana modificada de cada época histórica", constituída pelos aspectos particulares de cada cultura e de cada sociedade em um período histórico específico.
Para Marx, o ser humano muda ao longo da história e, no entanto, permanece o mesmo. Isso porque ele considera que o ser humano constrói-se a si mesmo por meio do trabalho e, conforme se constrói, se modifica. A construção é feita a partir de uma espécie de "matéria-prima" que é o próprio ser humano, e isso permanece sempre o mesmo. Daí a possibilidade de falar em uma natureza humana. Mas ao trabalhar e transformar a natureza, o homem se modifica e é, por isso que, segundo Marx, é o trabalho que faz com que o ser humano seja propriamente humano.
Em outras palavras, para Marx os seres humanos produzem a si mesmos por meio do trabalho. O trabalho é, portanto, fonte de humanidade, de humanização.
Por condição humana, no texto de Marx (Manuscritos econômico-filosóficos), entende-se a situação concreta vivida por homens e mulheres, bem como as características que eles assumem em cada momento histórico. Na sociedade capitalista do século XIX, Marx afirmava que a condição humana era a alienação no processo do trabalho, ou o trabalho alienado.
Marx denominava trabalho alienado aquele que acontece no capitalismo industrial, em que, devido à divisão de funções entre os trabalhadores, cada trabalhador não conhece o processo geral do trabalho. Ele não tem condições de compreender como atividade que ele realiza se encaixa no processo de produção. Outro aspecto é que aquilo que o trabalhador produz não pertence a ele, mas ao dono da fábrica. Esse aspecto é essencial, pois revela o fundamento da alienação: a apropriação privada da produção da riqueza humana. Assim, o trabalho perde sua "humanidade" no processo do trabalho, uma vez que ele coloca parte de sua vida naquilo que produz e que não pertence a ele. Ele próprio, desse modo, é transformado em um objeto, em uma coisa. Em sua obra de maturidade, como em "O capital", Marx denominará esse processo de "reificação", partindo da palavra latina para 'coisa', que é res.
O trabalho passa a ser, então, um processo de "coisificação" do trabalhador, perde a possibilidade de ser criativo e deixa de ser um processo de transformação da natureza e construção do humano, convertendo-se em um processo mecânico e repetitivo. O trabalho já não é aquilo que faz o ser humano plenamente humano, tornando-o um animal como qualquer outro.
Segundo Marx, se a própria humanidade produziu a desumanizante condição humana do capitalismo, os próprios seres humanos devem transformar essa condição, superando o trabalho alienado por meio da abolição da propriedade privada dos meios de produção. Somente assim, será possível retornar ao processo de autoconstrução do humano, para a criação coletiva e histórica daquilo que chamamos "natureza humana" e que os seres humanos produzem cotidianamente nas suas relações consigo mesmos, com os outros e com o mundo.  

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Metafísica ou ontologia?

A palavra metafísica não foi empregada pelos filósofos gregos. Foi usada pela primeira vez por Andrônico de Rodes, por volta do ano 50 a.C., quando recolheu e classificou as obras de Aristóteles que haviam ficado dispersas e perdidas durante muitos séculos. Com essa sentença - tá meta tá physica, o organizador dos textos aristotélicos indicava um conjunto de escritos que, em sua classificação, localizavam-se após os tratados sobre a física ou sobre a natureza.
Ora, os escritos que Andrônico de Rodes pospôs aos escritos de física haviam recebido uma designação por parte do próprio Aristóteles quando este definira o assunto de que tratavam: são os escritos da Filosofia Primeira, cujo tem é o estudo do "Ser enquanto Ser". Desse modo, o que Aristóteles chamou de Filosofia Primeira passou a ser designado como metafísica.
No século XVIII, o filósofo alemão Jacobus Thomasius considerou que a palavra correta para designar os estudos da metafísica seria ontologia. Essa palavra é composta de duas outras: Onto vem de tò on, que significa 'O Ser'. O Ser é o que é realmente e se opõe ao que parece ser, à aparência. Assim, a ontologia significa estudo ou conhecimento do Ser, dos entes ou das coisas tais como são em si mesmas, real e verdadeiramente, correspondendo ao que Aristóteles chamara de Filosofia Primeira, isto é, o estudo do Ser enquanto Ser.

A lógica.

Toda ciência tem sua matéria: é esta o objeto cujas leis ela investiga. Assim, a matéria da geometria são as figuras extensas; a da astronomia são os astros, a da biologia, os fenômenos da vida; a da psicologia, os fenômenos psíquicos. Toda ciência tem também uma forma: é o conjunto dos processos que ela põe em prática a fim de chegar a conhecer as leis do objeto particular do seu estudo.
Mas estas diversas formas das diferentes ciências são a obra de um mesmo espírito. O espírito que demonstra que a soma dos três ângulos retos é o mesmo que estabelece as leis da queda dos corpos e as dos fenômenos vitais. Por mudar de objeto, o espírito não muda de natureza; apesar das características particulares de cada uma da ciências, as operações do pensamento têm sempre alguma coisa de comum; obedecem a leis independentes do objeto ao qual se aplicam, e estas leis resultam não do objeto pensado, mas do próprio pensamento.
Estabelecer estas leis do pensamento considerado em si mesmo, abstração feita dos objetos a que se dirija e, em seguida, determinar as diferentes aplicações das mesmas, eis o duplo objeto da lógica.

O indivíduo utilitarista, segundo Jeremy Bentham e John Stuart Mill

Para o utilitarismo, o homem é um ser que só é livre quando se desenvolve intelectualmente e é capaz de fazer escolhas morais, diferentemente dos preceitos de Locke, que afirmava a liberdade do homem a partir da natureza.
Também não é por um contrato original que o homem passaria a desenvolver a civilização. Primeiro, porque esse contrato não pode ser provado historicamente e segundo porque, para se firmar o contrato, todos teriam certa igualdade. Para Locke, os ricos se tornaram ricos em função do exercício moral da liberdade. A riqueza era, assim, uma recompensa do bom uso da liberdade, sem dano aos outros. Se pensarmos historicamente, isso não é uma verdade, pois sabemos que o processo de enriquecimento está atrelado ao processo de subordinação e empobrecimento do outro.
Para o utilitarismo, o homem é um ser que necessita vivenciar seus desejos e, com isso, vivenciar o prazer, o fim último de todos os seres vivos. Ele é um ser passional, não apenas racional ou natural. Para ajudar o homem, os utilitaristas pensaram em criar uma ciência moral tão exata quanto a Matemática, até mesmo para dar conta de um de seus problemas fundamentais, qual seja: como alcançar o prazer, sem produzir dor?
De fato, quando se considera o prazer como finalidade ética, temos aquilo que se chama hedonismo. No entanto, o hedonismo utilitarista está fundamentalmente preocupado com a vida em sociedade. Portanto, a noção de prazer e dor deve ser compartilhada, surgindo dessa partilha a verdadeira moral.

Como John Stuart Mill pensa o indivíduo? Para Mill, a diferença social degrada tanto os ricos como os pobres. Por isso, a igualdade deve ser buscada. Ela será mais útil na produção de prazeres. As relações de subordinação não são bem-vindas, como patrão e empregado, homem e mulher, rico e pobre etc. Outra ideia importante de Mill deriva da necessidade de coexistir pacificamente, pois, ao pagar, o patrão perde e, ao trabalhar, é o empregado quem perde, criando-se, portanto, uma tensão. Para evitá-la, seria fundamental que não houvesse nenhuma divisão social. 

Descartes e o discurso do método.

Numa obra intitulada "Discurso do método", o filósofo francês Descartes (considerado o iniciador do racionalismo moderno) descreve a intuição intelectual que ficou conhecida como cogito cartesiano, ou, mais simplesmente, o cogito. Descartes escreve, em latim: "Cogito, ergo sum", isto é, "penso, logo, existo".
Por que essa afirmação é um conhecimento intuitivo? Porque, quando penso, sei que estou pensando e não preciso provar e demonstrar é pensar. Ora, para pensar é preciso que alguém realize o ato de pensamento; portanto, aquele que pensa existe necessariamente como um ser pensante, pois, sem ele, não haveria o próprio ato de pensar. E isso também não precisa ser provado ou demonstrado, mas é imediatamente evidente.
Por que essa intuição é intelectual? Porque é realizada exclusivamente pelo intelecto ou pela inteligência, sem recorrer a nenhum conhecimento sensível ou sensorial. Quando digo "Penso, logo, existo", estou simplesmente afirmando racionalmente que sei que sou um ser pensante ou que existo pensando, sem necessidade de provas e demonstrações. A intuição capta, num único ato intelectual, a verdade do pensamento pensando em si mesmo.