sábado, 28 de março de 2015

Deleuze e Guattari e a revolução molecular
Gilles Deleuze denominou "sociedade de controle" a conformação social que opera segundo o biopoder. Sua principal característica é a abertura: enquanto a sociedade disciplinar precisava confinar os indivíduos em instituições para que o poder pudesse ser exercido sobre eles, agora isso já não é necessário. Deleuze mostra que as instituições disciplinares estão sendo desgastadas. Pouco a pouco, a escola parece estar sendo substituída pela noção de "formação permanente". Nenhum nível escolar é mais terminal;há sempre algo novo a aprender, e a formação nunca cessa. Nesse contexto, as tecnologias de ensin a distância ganham cada vez mais adeptos. Já não é necessário sair de casa nem ter um horário determinado para estudar.
Também a área da saúde tem passado por mudanças. Prioriza-se a prevenção, para evitar que se fique doente; em vez de internação, alguns casos são tratados em hospitais-dia, nos quais o paciente não permanece por longos períodos. Nas empresas e fábricas, a palavra de ordem é flexibilidade, e é cada vez mais comum que os funcionários possam organizar seu próprio tempo, muitas vezes trabalhando em casa. Por fim, mesmo nas prisões, o confinamento tem-se reduzido. Investe-se em penas alternativas, como prestação de serviços sociais, para reduzir ou substituir o encarceramento. Além disso, as pulseiras ou tornozeleiras eletrônicas, que monitoram os prisioneiros, têm permitido ampliar o cumprimento de penas fora das prisões.
O curioso é que essa aparente liberdade permite que sejamos controlados. Podemos fazer quase todas as operações financeiras pela internet, por exemplo, sem precisar ir a uma agência bancária. Isso nos dá uma sensação de liberdade; podemos pagar uma conta em qualquer horário, e não apenas quando a agência bancária está aberta. Mas, para essas mobilidade seja possível, todos os nossos dados financeiros estão disponíveis para um funcionário do banco a um clique no computador.
Deleuze exemplifica com a construção de autoestradas. Cortar o país com extensas rodovias parece muito inreressante, ao facilitar a mobilidade da população. Mas, ao mesmo tempo, a autoestrada permite que se controle esse deslocamento. Antes das autoestradas, as pessoas podiam escolher os caminhos, seguindo por pequenas estradas locais, por exemplo. Alguém saía da cidade B, e ninguém saberia localizá-lo durante o trajeto. Com a existência de uma autoestrada, sabe-se qual é o percurso. Hoje, com o uso do GPS popularizado, isso se tornou ainda mais simples, tomando uma dimensão que Deleuze não poderia imaginar há muitos anos.
O avanço da tecnoçogia eletrônica levou às últimas consequências a sociedade de controle descrita por Deleuze. O celular nos torna objeto de controle não apenas por meio de telefonemas, mas também de ferramentas que indicam em um mapa o local exato em que nos encontramos.
A frase "Sorria, você está sendo filmado!" é a síntese da sociedade de controle, que espalha câmeras de vigilância por todo lado. Sabendo que há controle, deixamos de fazer as coisas que talvez fizéssemos se não estivéssemos sob vigilância. E muitas vezes nos apropriamos desses mecanismos, sendo nós mesmos instrumentos de controle do outro. A letra da canção reproduzida abaixo, da banda Maneva, fala sobre isso.
" Sorria você está sendo filmado
Sorria, sorria, sorria você está sendo filmado
Não faça nada errado
Celulares me tornaram uma espécie de soldado
Que espera sempre o caos pra usar como cenário
Vadias, vadias, vadias eu filmo sua dança
Minha lente sempre alcança
A marca do biquini, a calça agarrada
Depois botar na rede e mostrar para a rapaziada
As brigas, as brigas, as brigas elas eu nunca aparto
Adoro as vias de fato, espero pelo sangue
Minhas lentes querem a chance
De botar lá no Datena um vídeo que seja chocante
Não não uso olhos para ver
A minha consciência perdi na adolescência
Bombardeado por novelas que mataram minha inocência
A violência foi vendida, a nudez oferecida
Agora é minha vez de fazer filme com a minha vida
Filme de supermercado mostra uma execução
Dez tiros no sujeito sem tempo de reação
A câmera no prédio flagrou aquela menina
Recebendo de um rapaz que a alma feminina
Violência banalizada e oferecida sem restrição
Nutrem os calos da alma que já não se importam com esta visão
Banda podre do mundo mostrada sem cortes e sem figurino
Se torna o passatempo de muitos meninos ".
Em termos políticos, a sociedade de controle se aproxima dos totalitarismos analisados por Hannah Arendt. Uma sociedade de controle é uma sociedade atomizada, que tende a isolar as pessoas, ao mesmo tempo que fornece os meios para que elas sejam controladas todo o tempo. Você poderia perguntar: por que isolamento, se hoje nos comunicamos o tempo todo pelas redes sociais, torpedos e mensagens instantâneas? Estas novas formas de comunicação pretendem aproximar as pessoas e criam a ilusão de que se pode estar em contato com um número quase infinito delas. Entretanto, ao ampliarmos de maneira indefinida o contato com as pessoas por meio de recursos eletrônicos, tendemos a ter contato cada vez mais superficial e ligeiro com todas elas. Assim, ao ampliarem a quantidade de contatos, essas novas tecnologias diminuem a profundidade desses mesmos contatos. Outra consequência desta forma de sociabilidade é o distanciamento cada vez maior da esfera política. Ao ter de lidar com um número excessivamente grande de demandas da vida privada, nossas energias e interesses são inteiramente canalizados para dentro dela, de maneira que nos afastamos cada vez mais da esfera pública.
Claro que isso não precisa ser assim. Os mesmos maios de controle podem ser meios de ação política. Falando de ação política na sociedade de controle, Deleuze foi direto: não se trata de "temer ou esperar, mas de buscar novas armas". Não podemos lutar politicamente hoje com as armas do passado, pois elas já não servem; precisamos buscar novas armas, inventar formas de ação para resistir ao potencial totalitário da sociedade de controle.
Deleuze e Guattari analisaram também o capitalismo sob diversos aspectos e pensaram em uma ação política para a sua transformação. Uma conclusão desses autores é que o capitalismo é um "sistema elástico", ao contrário do que pensavam os marxistas, que um modo de produção se transforma quando se esgotam suas possibilidades de exploração e ele chega ao seu limite, Deleuze e Guattari sustentam que o capitalismo sempre coloca seus limites mais adiante. Um exemplo é a contracultura e o movimento Hippie da década de 1960 que questionavam o mercado capitalista e, para se opor a ele, usavam roupas velhas e rasgadas. Para se opor à massificação, muitas vezes faziam suas próprias roupas, como forma de afirmar sua singularidade. Décadas depois do movimento, entretanto, o capitalismo se apropriou da estética Hippie transformando em mercadorias fabricadas em massa o que eles usavam para se opor ao sistema.
A força do capitalismo, segundo Deleuze e Guattari, reside no fato de que ele captura nossos desejos e nos faz desejar aquilo que o sistema quer que desejemos. Agimos de acordo com os nossos desejos, pensando que somos livres, mas estamos sendo controlados e manipulados. Os autores afirmam que essa é a mesma dinâmica usada pelo fascismo, que serviu de base para os governos totalitários. Mas, em vez de um "fascismo de Estado", trata-se de um "microfascismo", que é ainda mais eficaz porque passa despercebido e porque se estende por toda a sociedade.
Se a força desse fascismo reside no desejo, está aí também a possibilidade de fazer resistência. Deleuze e Guattari falam de uma micropolítica que se constrói nas relações cotidianas e que pode resistir ao fascismo da sociedade de controle.
Não podemos lutar contra o Estado com suas próprias armas, pois seremos vencidos. Não podemos simplesmente usar as do controle contra o controle. É necessário inventar novas armas. Para Deleuze e Guattari não faz muito sentido negar o Estado e achar que é possível destruí-lo; ao contrário, é preciso reconhecê-lo, conhecer sua força, para tentar mantê-lo afastado. E essa é uma luta constante, não é uma revolução que se faz, e depois dela o mundo se torna completamente outro.
Essa é a lição daquilo que eles denominam revolução molecular, uma revolução que se faz todo dia, nas pequenas coisas, procurando agir de modo não fascista cada um consigo mesmo e com aqueles que estão próximos. Inventar formas de viver o próprio desejo, não se deixando capturar e controlar. Não uma grande revolução, que porá fim  aos problemas e criará uma nova realidade, mas pequenas revoluções permanentes, que vão produzindo novos fluxos de desejo e de ações, novas possibilidades de ser, de sentir, de pensar, de agir. Esse seria um caminho possível para construir laços sociais que não nos deixem no isolamento, presas fáceis para um novo totalitarismo. 

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