sábado, 29 de outubro de 2016

Filosofia e Gênero.

Texto I
A ilustração é esse momento, que se inicia em fins do século XVII e se estende por todo o século XVIII, em que a razão deixa a prudente atitude cartesiana de se dedicar tão-somente à metafísica e à ciência e passa, em cheio, a criticar a sociedade e seus costumes. A ilustração tinha por palavra de ordem, como o disse clara e contundentemente Kant: "atreva-se a saber", ou seja, atreva-se a pensar por si mesmo sem tutores, nem religiosos nem políticos.
Porém, no que diz respeito à conscientização dos sexos, na maioria dos pensadores ilustrados encontramos profundas contradições em relação a esta palavra de ordem da autonomia. Rousseau, no livro V de Emílio, sustenta que toda educação das mulheres deve estar limitada a seus deveres para com os homens, "agradar-lhes, ser-lhes úteis, fazer-se amar e honrar por eles", "aconselhar, consolar, fazer-lhes a vida agradável e doce". Criá-los desde pequenos e cuidar-lhes quando idosos. Mas Rousseau é estudado como grande pedagogo, o pedagogo da autonomia, do deixar livremente às crianças desenvolver sua personalidade. No entanto, esse modelo de desenvolvimento da personalidade em liberdade era para Emílio, que representa o modelo masculino. Para Sofia, que é o modelo feminino, Rousseau propõe praticamente o contrário: defende que não há que deixar que se desenvolva livremente, precisa aprender a submissão, aprender a viver para outros, a fingir e a manter as aparências.
Kant, pensador da autonomia, sustenta que as mulheres são civilizadoras do homem, sua função é polir as toscas maneiras do macho. Mas elas mesmas, afirma, não são capazes de julgamento moral. Como se pode ver, a palavra de ordem "atreva-se a saber", "atreva-se a guiar-se pelo seu próprio entendimento" de Kant não alcança as mulheres. As estudiosas da ilustração têm focado em especial nesse aspecto, concluindo que embora se trate de uma limitação do pensamento que pretende ser universal, válido para todos, no interior destas teorias haveria uma certa coerência. Há uma contradição entre os grandes princípios proclamando e sua aplicação às mulheres. Mas, ao mesmo tempo, assimilam, haveria certa coerência interna porque tanto os liberais, como Kant, quanto os republicanos, como Rousseau, estão pensando em um modelo de sociedade burguesa no qual as mulheres vão estar em casa garantindo a infraestrutura do homem produtor, que sai ao mundo do trabalho assalariado e da política. No ãmbito do público é considerado superior, mas secretamente se apoia num mundo doméstico no qual se tem marginalizado as mulheres (Cobo, 1995). Podemos afirmar, então, que a filosofia da modernidade preparou a grande divisão entre o mundo do público e o mundo do doméstico, divisão de esfera na qual ainda vivemos.
PULEO, Alicia H. Filosofia e gênero: da memória do passado ao projeto de futuro. In: GODINHO, Tatau; SILVEIRA, Maria L. (Org.). Políticas públicas e igualdade de gênero. São Paulo: Coordenadoria Especial da Mulher, 2004. p. 17-18.

Texto II
Decálogo da esposa
I- Ama teu esposo acima de tudo na terra e ama teu próximo da melhor maneira que puderes; mas lembra-te que a tua casa é de teu esposo e não de teu próximo;
II- Trata teu esposo como um precioso amigo; como a um hóspede de grande consideração e nunca como uma amiga a quem se contam as pequenas contrariedades da vida;
III- Espera teu esposo com teu lar sempre em ordem e o semblante risonho; mas não te aflijas excessivamente se alguma vez ele não reparar nisso;
VIII- Não peças a vida o que ela nunca deu para ninguém. Pensa antes que se fores útil poderás ser feliz;
X- Se teu esposo se afastar de ti, espera-o. Se tarda em voltar, espera-o; ainda mesmo que te abandone, espera-o! Porque tu não és somente a sua esposa; és ainda a honra do seu nome. E quando um dia ele voltar, há de abençoar-te.
Decálogo da esposa. Revista feminina, São Paulo, ano XI, n. 127. p.68, 1924.

A partir dessas referências e do fato de que vemos cotidianamente as mulheres ocupando os mesmos postos que os homens, podemos pensar que essa condição das mulheres de submissão aos homens já foi superada, pois não faltam evidências que mostram que as mulheres saíram da esfera do lar e da dependência do casamento, por exemplo, para atuar em profissões e postos tradicionalmente ocupados por homens. Podemos lembrar que, hoje, há mulheres trabalhando na construção civil, compondo a força policial civil e militar, dirigindo ônibus e caminhões, liderando empresas, exercendo cargos públicos e políticos nas esferas legislativa e executiva. São inúmeros exemplos que podemos dar para ilustrar que as mulheres saíram da esfera do lar e ganharam a esfera pública. Contudo, observar as mulheres ocupando os mesmos espaços dos homens não é suficiente para entender as diferenças que ainda permanecem entre homens e mulheres.
Certamente já ouvimos nos noticiários de televisão que as mulheres que exercem as mesmas funções dos homens, em geral, ganham menos; que as mulheres ainda são vítimas da violência doméstica; que as meninas ainda são mais lembradas quando se trata de aprender a executar trabalhos domésticos. Ou seja, a perspectiva de atrelar as mulheres a condição inferior e ao espaço doméstico ainda persiste.
Para se contrapor a esta posição, podemos citar a francesa Olimpe de Gouges, que faz a seguinte declaração: Mulher, desperta. A força da razão se faz escutar em todo o universo. Reconhece teus direitos. O poderoso império da natureza não está mais envolto de preconceitos, de fanatismos, de superstições e de mentiras. A bandeira da verdade dissipou todas as nuvens da ignorância e da usurpação. O homem escravo multiplicou suas forças e teve necessidade de recorrer às tuas, para romper os seus ferros. Tornando-se livre, tornou-se injusto em relação à sua companheira.
 A filósofa Simone de Beauvoir, em seu ensaio filosófico O segundo sexo, publicado em 1949, faz uma análise do papel da mulher na sociedade, negando concepções e estudos que discorrem sobre uma essência feminina. Para a autora, a condição da mulher é uma escolha dos homens apoiada pela submissão das mulheres, que devem assumir a responsabilidade de mudar a situação de submissão, pois são seres livres que apenas por escolha própria ficarão submetidas ao preconceito social. A única libertação possível da mulheres virá da política, isto é, da união das próprias mulheres. Elas precisam reunir-se, reconhecer seus problemas, partilhar ideias; em outras palavras, precisam lutar juntas. Não há como ser diferente, pois não se pode esperar que todos os homens abram mão dos seus privilégios pelas mulheres. Para a filósofa, não se trata de colocar mulheres contra os homens, mas de colocá-las contra o machismo, contra as situações de opressão.
Texto I- Sobre o Segundo sexo, de Simone de Beauvoir
Simone de Beauvoir, na obra Segundo sexo, nega um destino biológico, psíquico e econômico para a mulher na sociedade. Nesse sentido, para a filósofa, ninguém nasce mulher, torna-se mulher. Ao desenvolver o seu argumento, Beauvoir recorre ao exemplo dos primeiros anos de vida de qualquer criança. Independentemente do sexo, cada criança vivencia experiências semelhantes nas primeiras etapas que sucedem o nascimento: os primeiros movimentos para conhecer o mundo se dão pelas mãos e pelos olhos tanto nos meninos como nas meninas. Podemos notar o mesmo balbuciar e os mesmos passos trôpegos, as mesmas alegrias e dificuldades. Dessa forma, todas as crianças apresentam as mesmas experiências, carências e prazeres. Se não for pelas vestimentas e/ou enfeites, dificilmente diferenciamos, à primeira vista, o sexo dos bebês. Contudo, essa primeira diferenciação mais evidente, relativa ao tipo de roupa e às cores, gurda outras que querem marcar o destino de cada sexo. As primeiras brincadeiras pouco diferem, mas os brinquedos e os jogos são diferentes, assim como a postura exigida para cada brinquedo. Tal exigência vai aumentando conforme as crianças vão crescendo. Segundo a filósofa, para os meninos, a autonomia é forçada, já pela renúncia de muitos mimos. Para as meninas, o estímulo à graciosidade e afagos é ocasião submetê-las à carência por proteção. O que é estimulado nas meninas, é vetado para os meninos: "meninos não choram", "meninos não se enfeitam", pois são coisas de "mulherzinha". Com o passar do tempo, os meninos são estimulados a se afastarem das atividades relacionadas com a condição das mulheres e, ao contrário, as meninas são levadas a acompanhar e fazer atribuições como as das mães. Dessa forma, a condição da mulher não pode ser entendida como um destino dado pela natureza, mas pela sociedade.
Texto II- Ética, sexualidade, política
A ideia de que se deve ter finalmente um verdadeiro sexo está longe de ter sido completamente dissipada. Seja qual for a opinião dos biólogos sobre esse assunto, encontramos, pelo menos em estado difuso, não somente na psiqiatria, na psicanálise e na psicologia, mas também na opinião corrente, a ideia de que entre sexo e verdade existem relações complexas, obscuras e essenciais. Somos, na verdade, mais tolerantes em relação às práticas que transgridem as leis. Porém continuamos a pensar que algumas delas insultam a "verdade": um homem "passivo", uma mulher "viril", pessoas do mesmo sexo que se amam. Talvez haja a disposição de admitir que isso não é um grave atentado à ordem estabelecida, porém estamos sempre prontos a acreditar que há nelas algo como um "erro". Um "erro" entendido no sentido mais tradicionalmente filosófico: uma maneira de fazer que não é adequada à realidade.
FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade, política. 2. ed. Organização e seleção de textos Manuel Barros da Motta; tradução Elisa Monteiro, Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p. 84-85. (Coleção Ditos e escritos, 5).
A partir do texto de Simone de Beauvoir, podemos considerar que não existe uma motivação natural que possa determinar os papeis de homens e mulheres na sociedade. Podemos afirmar que as ideias dela encontram respaldo na história de diferentes povos e nas histórias das sociedades ocidentais. A história tem demonstrado que as funções de homens e mulheres têm mudado com o tempo. Elas não são naturais, não há uma essência feminina ou masculina. Tudo isso é um posicionamento para controlar a vida das pessoas. Na maioria das sociedades ocidentais, os meninos têm de ser sempre fortes; e as meninas, sensíveis.
Segundo o filósofo Michel Foucault, a determinação do que é certo, errado, normal e anormal no ãmbito do sexo, do gênero e da sexualidade está relacionada com classificações fundadas em identificações e diferenciações que não são naturais, mas criadas por convenção social para melhor controlar as populações. Essas classificações foram engendradas e perpetuadas por meio de diferentes mecanismos do poder, entre eles: a produção de saberes e o estabelecimento de disciplinas e discursos que nos fornecem determinado modo de ver o mundo e as relações humanas.
Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã (1791)
1. A mulher nasce livre e mantém-se igual ao homem em direitos. As distinções sociais só devem ser fundadas no interesse comum.
2. A finalidade de toda associação política é a preservação dos direitos naturais imprescritíveis da mulher e do homem. Estes direitos são: a liberdade, a propriedade, a segurança e especialmente a resistência à opressão.
3. O princípio de toda soberania reside essencialmente na Nação que nada mais é do que a reunião da mulher e do homem. Nenhuma instituição e nenhum indivíduo pode exercer autoridade que não emane expressamente da nação.
4. Liberdade e justiça consistem em restituir tudo o que pertence ao outro; assim, o exercício dos direitos naturais da mulher não tem outros limites senão aquele que a tirania perpétua do homem opõe a eles; estes limites precisam ser reformados de acordo com as leis da natureza e da razão.
GOUGES, Olympe de. Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã (1791). Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/mulheres.htm>. Acesso em : 19 fev. 2014.


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